A Comunidade Hebraica na Região dos Vales do Madeira, Mamoré e Guaporé

Por: Nilva Menezes

Este trabalho teve a proposta de ampliar os registros e estudos sobre o povo judeu nos vales dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, principalmente junto as pesquisas pioneiras efetuadas pelo jornalista Weltmann sobre a existência numerosa de descendentes dos imigrantes judeus marroquinos em toda a região do Amazonas. As fontes utilizadas foram os documentos pertencentes ao acervo do Centro de Documentação Histórica do Tribunal de Justiça do estado de Rondônia: processos judiciais, livros cartoriais de Imóveis e Registro Civil que registram a movimentação das pessoas pelas vilas ao longo do trecho ligado pela Vila de Porto Velho, ponto de partida da Estrada de Ferro Madeira Mamoré a Guajará-Mirim, ponto final da ferrovia que se estendia por rios e florestas. A periodização é dada pela instalação da Comarca de Santo Antonio do Rio Madeira no ano de 1912, em face da documentação produzida a partir de então dentro da esfera do judiciário e que foram as principais fontes para a pesquisa.

O registro pessoal proporcionado pela ficha de mapeamento, onde os descendentes narram a história das suas famílias foi fonte importante, contribuindo para a observação das trajetórias pessoais dos judeus na região, e proporcionou a percepção das relações familiares e principalmente a observação do momento de rompimento que o título desse trabalho propõe, a quebra da tradição religiosa. A narrativa de Mirian, filha de um judeu casado com uma mulher, identificada como não judia que era filha de bolivianos, nascida na Bolívia, traz de forma clara essa observação. O pai de Mirian até morrer guardou os costumes religiosos. Os filhos possuem nomes típicos, Abrão, Myrian e Muny, mas somente ele praticou nas datas próprias do judaísmo a sua fé. Para os filhos o dia do Yom Kippur, era um dia em que ninguém podia falar com o pai e que ele comia um pão que vinha de São Paulo.

A presença hebraica na região tem sido estudada e foi registrada com maestria por Samuel Benchimol em diversos trabalhos, no entanto procuraremos aqui, alargar e ampliar as observações já existentes quanto a presença dos judeus nas cidades de Porto Velho até Guajará-Mirim, observando as atividades exercidas e o movimento do grupo, registrando a importante presença desses imigrantes.

Em trabalho sobre as identidades judaicas no Brasil organizado por Bila Sorj falando sobre os Judeus na Amazônia, Eva Alterman Blay registra a história de vida do judeu Isaac, que aos 21 anos no ano de 1909, vivia nos seringais perto da Bolívia junto ao Rio Abunã e que trazia seus filhos para o brith-milah (circuncisão) em Porto Velho onde existia uma comunidade hebraica composta de trabalhadores dos seringais e da Estrada de Ferro Madeira Mamoré.

Conforme Samuel Benchimol em estudo sobre os judeus na Amazônia, as cerimônias religiosas eram realizadas em Belém onde havia um rabino (Benchimol, 1999), no entanto, Eva Blay nos informa sobre a realização da circuncisão na Vila de Porto Velho por volta de 1909. O mais provável é que fosse na localidade de Santo Antonio do Rio Madeira, vez que no ano de 1909 em Porto Velho existia apenas o barracão da Estrada de Ferro Madeira Mamoré, sendo que todo o centro político, econômico e social estava em Santo Antonio e nas localidades até Guajará-Mirim.

Apesar de não termos registros, os documentos estudados deixam perceber que eles não chegaram a uma organização completa vez que seus mortos foram enterrados em cemitérios não judeus conforme os registros encontrados de Isaac Benchimol (Cemitério da Candelária por volta de 1910) e no cemitério da localidade de Abunã encontra-se enterrado Isaac Essabá (1913) (Benchimol.1999).

Inscrições em túmulos no Cemitério dos Inocentes em Porto Velho, onde estão Salomão David Quirub, nascido em 07 de março de 1891 e falecido em 06 de março de 1942; Isaac Benchimol falecido em 21 de julho de 1927, onde consta “(…) homenagem de sua esposa, filhos e HEBRAICOS de Porto Velho”; Marcos Benchimol falecido em 25 de março de 1938; Lazaro Bohabot “(…) filho de Jayme Bohabot”, falecido em 10 de novembro de 1922, são alguns dos nomes que registram a variedade de nomes de família e a presença marcante na região. Os registros de morte como da Senhora Reina Buzaglo falecida em Santo Antonio do Rio Madeira em 1913, cujo inventário registra bens. Os autos de inventário deixam transparecer a importância da família.

Isaac Benchimol é enterrado em 1910 na Candelária (Benchimol, 1999) e em 1923 no cemitério dos Inocentes consta outro sepultamento com pessoa do mesmo nome. Embora os nomes sejam os mesmos não se trata da mesma pessoa. É comum a confusão feita pela repetição dos nomes entre os judeus. Essa confusão também ocorre quando se trata dos sírios e libaneses. A variedade dos nomes adotados por eles não é muito grande e era costume ficar repetindo o nome nos descendentes, assim como a utilização de nomes brasileiros, procurando a aproximação sonora com seus nomes originais.

Quando da observação da documentação existente no Centro de Documentação Histórica do Poder Judiciário, onde estão anotadas as transações comerciais e as atividades dos habitantes locais, percebemos a grande concentração dos nomes que podem ser identificados como hebraicos na localidade de Santo Antonio, mesmo porque nos primeiros anos do século XX a localidade de Porto Velho pertencia a Ferrovia. Santo Antonio do Rio Madeira é que apresentava uma sociedade organizada.

Conforme anotação os judeus na região precederam aos árabes (Benchimol, 1999), outro grupo migratório notável. Jeffrey Lesser em seu livro – A Negociação da Identidade Nacional, que trata da minoria de migrantes e da luta pela etnicidade no Brasil observa:

A surpresa dos brasileiros ante a crescente população originária do oriente Médio transformou-se em choque, quando ficou claro que o primeiro grupo numeroso de imigrantes árabes a vir para o Brasil não era muçulmano nem cristão. De fato, a comunidade norte-africana que começou a se estabelecer na foz do Amazonas, nas primeiras décadas do século XIX, era exclusivamente judia.

Os judeus instalados em Santo Antonio do Rio Madeira, assim como os de Manaus, mantinham as mesmas características e comportamento, sendo certo que a maioria era procedente de Marrocos e exerciam atividades comerciais. Sendo claro também que os judeus que desde o começo do século XIX começaram a se estabelecer ao longo dos rios formavam uma rede de Belém até onde foi possível chegar.

Quando da instalação das atividades judiciárias a documentação nos permite observar os registros de imóveis e transações comerciais datados a partir de 1912, efetuados no cartório da localidade. Neles encontramos um numero grande de famílias hebraicas instaladas na comunidade, exercendo o comércio por meio de uma rede idêntica a dos árabes que ocorreu logo a seguir, mantida através de Belém, Manaus, Porto Velho, Santo Antonio do Rio Madeira, Fortaleza do Abunã, Presidente Marques, Generoso Ponce, chegando até Guajará-Mirim.

A identificação é feita através dos sobrenomes de família. Samuel Benchimol, relaciona os nomes de famílias que adentraram a Amazônia, muitos desses nomes são encontrados exercendo atividades comerciais na localidade de Santo Antonio do Rio Madeira, sendo perceptível que não eram apenas viajantes. Os nomes dos homens aparecem os nomes das esposas assinando em atas de casamentos, em transações comerciais, observando que as mulheres não eram analfabetas e tinham uma participação mais ativa na vida e nos negócios dos maridos que as brasileiras ou outras estrangeiras. Grande número de nomes é encontrado nos documentos de compra e venda de imóveis, nas transações comerciais, nos casamentos e informações sobre falecimento proporcionado pelos inventários.

No caso dos judeus que habitavam a região de Santo Antonio do Rio Madeira, muitos deles são identificáveis através da ata de casamento onde encontramos o nome dos pais dos noivos oriundos do Marrocos e onde é registrado o casamento religioso já realizado de acordo com as tradições hebraicas. Possivelmente essa cerimônia tivesse sido realizada em Belém, onde havia uma sinagoga e um rabino, sendo o casamento civil realizado após, em Santo Antonio onde residiam as famílias.

A característica comum entre eles é a procedência. Oriundos de Tanger no Marrocos refaziam na Amazônia a continuidade das suas tradições, casando-se com os iguais, assim como anotou Benchimol em seu estudo “AMAZÕNIA – Formação Social e Cultural”.

A premissa de que para se criar uma sinagoga são necessários dez judeus (homens) com certeza poderia ser aplicada em Santo Antonio do Rio Madeira no começo do século. Relacionamos aqui nomes de família, alguns já registrados por Benchimol e que aparecem nos documentos de Santo Antonio do Rio Madeira entre os anos de 1912 e 1930, residindo ou comercializando temporariamente.

Israel, Azulay, Nabeth, Reich, Guitart, Chermont, Larramaga, Meyer, Bensabaht, Essabá, Serfaty, Benarech, Eshrique, Benchimol, Benchitrit, Buzaglo, Cerreuya ou Serruja, Malaquias, Marache, Nabeth, Guitart, Chermont, Reich, Benayon, Chacon, Dantas, Bastos, França, Castillo, Sotello, Barbiery, Drervell, Norton, Gusman,… Observamos nomes como Siqueira, Penha, Pessoa, Barchilon, Paiva, Barreto, qualificados como portugueses e que são encontrados nas mesmas listas onde se encontram os judeus estabelecendo casamentos e relações comerciais.

Eles mantinham relações comerciais com os árabes em pequena escala, observando-se um relacionamento mais estreito com os portugueses. Percebe-se pela relação dos nomes nas cerimônias de casamento e as testemunhas arroladas nas questões judiciais e nas transações imobiliárias que as duas nacionalidades se serviam uma da outra, havendo troca nas relações.

Cabe aqui uma observação sobre o assunto “cristãos novos”. Ser judeu não é uma situação externa e sim uma condição interna e sabemos que muitos judeus durante todo o processo de perseguição que sofreram foram obrigados a mudarem de nome. Relações de negócios e casamentos de membros das comunidades hebraica e portuguesa são freqüentes, induzindo-nos a crer que seriam os portugueses cristãos novos, mas isso os documentos não nos respondem.

Quando do trabalho de campo anotamos que no caso da colaboradora Mirian Magosso, seu pai contraiu núpcias com uma mulher de origem boliviana e que a cerimônia foi realizada no Pará. Essa mulher era viúva de um outro judeu da família Azulay. Nos parecendo que esses casamentos no período passavam por um processo de triagem. Todos eram realizados no Pará onde existia uma sinagoga.

Aqui nos reportamos ao que não é dito, ao que está por de trás das falas, nos silêncios. Conforme dados os judeus começaram a migrar para a região de Belém desde 1810, foram mais de 100 anos de transformações e de migração. Benchimol fala dos filhos de judeus ao longo dos rios e aqui enxergo parte dos portugueses de Santo Antonio como cristãos novos. Conforme estudos sobre as mulheres judias (polacas), contrabandeadas e vendidas no Brasil para exploração sexual (Benchimol, 1999) (Kushnir, 1996), observamos casos de mulheres com nome hebraico, procedentes do Marrocos vivendo em Porto Velho com homens de outras nacionalidades, qualificadas de forma pejorativa e envolvidas em processos criminais.

Um exemplo pode ser encontrado no processo onde o português Manoel de Oliveira Campos e sua “concubina” Mercedes Sol Sabbat, marroquina (judia) ele com 26 ela com 25 anos de idade são acusados por brigas na residência de funcionário da Madeira Mamoré Railway Company, na vila de Porto Velho.

A evidência oferecida pela documentação das atividades dessa comunidade na região é bastante ampla e diversificada. Encontramos registros com nomes hebraicos como o caso de Ida Bentes Azulay sem muitas qualificações; consta que ela vivia com Orlando Pereira da Costa com quem teve dois filhos que não receberam o nome Azulay em seus registros de nascimento, constando apenas o nome do pai. Ida era doméstica e Orlando carregador de Malas, e pelo nome de família acreditamos que fosse Ida uma judia, mas Orlando não nos dá essa pista,mas possivel que fosse. Apesar da premissa de que a condição de judeu seja transmitida pelo ventre materno, o documento não nos propicia esse entendimento, assim como a condição paterna, como o caso de Miriam, não foi suficiente para manter a continuidade cultural a medida que observa-se tambem laços de permanencia a uma oficialidade foram muitas vezes mantidos por uma não matrilineariedade judaica tal como pela Halaká e sim apenas pela origem judaica paterna.

Com relação às atividades comerciais, essa presença também é notável. Francisco da Cunha Bembom, Elias Leão Buzaglo, e Jacob Essabá, que também traduzia documentos do espanhol para o português, tinham firmas estabelecidas em Manaus.

Abrão Levy, comerciante representante da Firma B. Levy. Moises Serfaty era comerciante em Porto Velho, Saleb Merheb, que foi comerciante na povoação de Generoso Ponce, cujo inventário tramitou em 1923. O montante da herança que foi de cinco contos e dezoito mil e novecentos réis foram adjudicados pela viúva Rosa Morheb e pelos filhos José Saleh Morheb de 11 anos, Genoveva Saleh Morheb de 07 anos e Josephina Saleh Morheb de cinco anos. Salomão Rengito era comerciante em Santo Antonio do Rio Madeira em 1926.

As firmas estabelecidas apresentam os nomes: Dinard Benayon e Companhia tendo como sócio Moyses José Bensabath; foi liquidada em 1916. Castillo & Companhia, Beynayon & Companhia, B. Levy e Companhia, N. Ariola e Companhia que nos induzem a afirmar pertenciam aos judeus em razão da forma de comercializar, sempre dentro de uma organização oportunizada pela rede partindo de Belém para Manaus e até Guajará-Mirim.

Muitos deles tinham firma estabelecida em Manaus e mantinham negócios em Santo Antonio, assim como nas demais localidades ao longo da ferrovia até Guajará-Mirim, sendo administrada por algum parente.

É certo e deve ser registrada a importância desses imigrantes na localidade que além das atividades comerciais exerciam os cargos públicos relevantes na sociedade de Santo Antonio. O nome Chacon do primeiro juiz da Comarca (1912-1914) de Santo Antonio figura na lista das famílias hebraicas da Amazônia, assim como Moyses José Bensabaht, comerciante e juiz suplente (1913 –1916) e José Penha, que era juiz adjunto do Distrito Judiciário do Estado do Amazonas.

Apesar de não termos registros nesta coleção de documentos anteriores ao ano de 1912 da localidade, certo é que essas famílias já se encontravam instaladas ali desde antes de 1900, provavelmente desde o início do período da exploração da borracha. Possivelmente desde o período em que foram abertos para navegação o Rio Amazonas e seus afluentes (1866) e que os judeus pioneiros que já se encontravam no Pará adentraram e se expandiram ao longo dos rios, das vilas, dos povoados e seringais da hinterlândia.

Benchimol anota que de 1810 a 1910 mais de mil famílias de imigrantes judeus, tanto sefarditas-marroquinas como de outros grupos culturais judeus da Europa e do Oriente Médio, vieram fazer a Amazônia, trazidos por motivos econômicos, sociais, religiosos e educacionais em busca da ERETZ AMAZÔNIA – A NOVA TERRA DA PROMISSÃO.

Com a queda da borracha esses nomes desaparecem, permanecendo poucos vestígios dessa presença tão marcante. Conforme ainda registra Benchimol, a maior parte estabeleceu-se em Manaus e Belém, estando registrados apenas a família Benesby e David Israel em Guajará Mirim. A família Querub em Porto Velho, Benchimol em Fortaleza do Abunã e Moses Bensabá em Santo Antonio do Rio Madeira.

Os nomes de família são como uma bandeira, significam tradição de famílias importantes da região. Nomes que já figuraram e figuram nas listas dos deputados, prefeitos, médicos, comerciantes, advogados, enfim, pessoas de destaque da sociedade. Muitos nem mesmo tem muita consciência, desconhecem os significados de ser um neto de judeu em face da identidade perdida.

As famílias, Benesby e Israel são citadas no trabalho de Samuel Benchimol como sendo os únicos remanescentes dos judeus na região do Guaporé. Ao que se observa pelas pesquisas desenvolvidas, a família Benesby permanece tanto em Guajará-Mirim como em Porto Velho mantendo as tradições culturais, no entanto a família Israel conforme se observa da fala da Mirian perdeu a identidade cultural. Com a morte de David Israel, tendo em vista seus filhos serem de ventre de mãe não judia, os filhos não se consideram judeus. Lembram o nome de família, um parente antigo que cultuava o Iom kipurr, e já se reconhecem como católicos.

Mesmo ficando a dúvida com relação à origem de Sara, face aos seus casamentos com dois judeus, ao fato de seu nome ser comum entre os mesmos, ela também poderia ser filha de pai judeu, que colocou-lhe um nome do seu gosto, mas a mãe não judia transmitiu-lhe a condição de também não ser judia. Seu filho do primeiro casamento que traz o nome Azulay, de origem judia pelo pai, não é judeu, condição que o ventre materno não lhe concedeu. Pelas informações de Miriam, ele é reconhecido socialmente como judeu, porém não participou das reuniões, das cerimônias religiosas com a família Benesby em Guajará-Mirim a exemplo de David Israel, seu padrasto.

A Historia a partir de estorias pessoais

Como exemplo utilizamos a história de Miriam que serve para percebermos como podem ter ocorrido as relações entre os imigrantes hebraicos para as regiões mais isoladas da Amazônia. A história de Miriam pode não ser só dela, pode ser de tantos outros filhos e netos de judeus que foram perdendo a identidade.

Mirian Israel Magosso, filha de David Miguel Israel, conta a história do seu pai e seus avós na Amazônia. Sua narrativa nos permite leituras de tantas outras famílias judias que vieram fazer a América ou fugindo das guerras. Suas lembranças são imagens que lhe deram. Sabe que seu pai era judeu, que praticava os rituais hebraicos em Guajará-Mirim com a família Benesby, mas isso na sua vida ficou apenas como imagens do dia que seu pai passava comendo o pão diferente e sem falar com ninguém. Ela informa que o pão para o jejum vinha de São Paulo. Sua mãe se chamava Sara, natural de Trinidad-Bolívia e segundo Mirim era católica, apesar de ter sido casada em primeiras núpcias com o judeu Isaac Azulay com quem tivera o filho Abrão Azulay. Em segundas núpcias uniu-se em Belém do Pará com David Miguel Israel tendo nascido dessa união Mirian e Muny. Mirim informa que seu pai praticou a religião, comemorando o Kippur até morrer, mas os filhos nunca praticaram, se reconhecem como católicos.

Durante as entrevistas com Miriam, questionando sobre o nome da sua mãe Sara Montanho, nome tipicamente hebraico e o fato de ter a mesma se casado, tanto nas primeiras núpcias da qual ficou viúva como na segunda com homens judeus. Ainda mais o fato de terem sido os casamentos realizados na cidade de Belém local de congraçamento dos judeus pela existência de sinagoga, a mesma não sabe se esses fatos guardam alguma relação com a origem da família de sua mãe.

Pedimos a Mirian que narrasse o que sabia da história de sua família. Ela sabia que estávamos querendo saber sobre o povo judeu na região e começa assim a descrever o que teve conhecimento:

Passarei agora a contar a História de David Miguel Israel. Chegou no Brasil, no Estado do Amazonas um casal de imigrantes com o nome de Jacob D’ Israel e Rica D’ Israel isso aconteceu mais ou menos no ano de 1897. Vieram para aqui fugindo das guerras, mas nesse intervalo de tempo minha avó Rica D’Israel engravidou, dando à luz a meu pai David Miguel Israel. Ele nasceu em Borba, Estado do Amazonas aos 14 dias do mês de setembro de 1900 e foi registrado no cartório desse município. Pouco tempo depois surgiu um surto de malária na época era a febre amarela muito grande no Amazonas. Temendo morrer desta moléstia embarcaram novamente para Montreal na França. Alguns anos depois os avós entregaram esse filho David Miguel Israel para um colégio interno, que só saiu dali quando completou 18 anos, já bem educado falando vários idiomas. O próprio colégio o mandou para o Brasil para o alistamento Militar, devido sua certidão de nascimento ser de Borba-Amazonas. Chegou entao um rapaz de 18 anos, serviu o exército e depois nunca mais voltou para a França. Sua atividade era mascatear pelos rios, marretava muito comprando e vendendo produtos e tornou-se comerciante em Manaus. Tinha um comércio de confecções, foi aí que ouviu falar em Guajará-Mirim, havia explodido aqui a borracha, a compra de peles, a poalha, e foi aí que ele veio para cá e começou a comprar peles, poalha, borracha e mandar para exportação. Conheceu nessa época minha mãe Sara Montanho e teve duas filhas Muny Israel Barbosa e Mirian Israel Magosso. Meu pai morreu no dia 27 de abril de 1985, com 85 anos de idade aqui em Guajará-Mirim.

O relato de Mirian, obtido através de uma ficha de mapeamento nos apresenta a história de uma família das tantas que vieram para a região e que exerceram atividades comerciais. Ela fala do seu pai, que nasceu em 1909, portanto esse tempo ao qual ela está se referindo é um tempo recente, mas que nos oferece descortinar como se processam as transformações.

Sara Montanho poderia ter tido uma história parecida com a de Mirian, talvez seus pais tenham passado pelo mesmo processo de estrangulamento cultural, o que fez com que ela perdesse a identidade. Muitas mulheres podem ter passado por processos idênticos.

Para concluir vale lembrar as observações de Benchimol em capítulo sobre a demografia judaica (Valer, 1999), onde ele aborda a questão dos filhos de judeus espalhados pelas barrancas de rios, dos tempos em que os judeus viajavam com seus regatões, antes dos árabes, ocorrendo o desaparecimento para o judaísmo de um grande número de famílias judaicas no interior amazônico. O ser, viver, ficar e sobreviver judeu não se tornou muitas vezes possível, e assim como o pai de Mirian que foi o último da família a comemorar o Yom Kipur, tantos outros esqueceram do dia de pedir perdão e acabaram incorporados e integrados à população amazônica.


Bibliografia

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