Como viemos parar na Amazônia
Por: Sultana Levy Rosenblatt
Publicado na revista Morasha – Edição 30
Parece incrível que pelo meio do século XIX meu bisavô materno fosse proprietário de canaviais situados na grande Ilha de Marajó, no norte do Brasil.
Parece incrível por vários motivos. Primeiro que tudo, ele era um jovem judeu e os judeus não gozam fama de aventureiros. Atribui-se à extremosa mãe judia o poder de impedir que os filhos se exponham a perigos…
Casamento em Belém do Pará-Noivos: Isaac Benchimol-Orduenha Cohen. Rabino David Benoliel Lendo a Ketubá.
Em segundo lugar, supõe-se que os judeus preferissem estabelecer-se nas cidades, perto de sinagogas, escolas, bibliotecas. Mas esse lugar a que meu bisavô entregou as primícias da sua vida não tinha sinagoga, nem biblioteca, nem sequer livraria. Era uma cidadezinha onde as facilidades, como condições sanitárias e assistência médica, ainda hoje são precárias.
Então, pergunta-se, como se explica que um moço judeu, educado, nascido em Tânger, no Marrocos, apareça feito senhor de escravos no coração de uma ilha amazônica? … que por esse tempo, os rapazes judeus eram encorajados pelos próprios pais a procurar nova vida, fosse onde fosse. Qualquer lugar seria melhor do que a existência em guetos rodeados de mouros inimigos.
O Brasil, a essa altura, era uma espécie de Terra Prometida. Um país com imensas áreas e pouca população, atraindo imigrantes com promessas liberais por uma lei que não levava em conta credo ou nacionalidade, contanto que a raça fosse branca. Assim, os judeus marroquinos, considerados imigrantes brancos, zarparam para a região amazônica esperando lá encontrar o “El Dorado”. Liberdade, acima de tudo liberdade religiosa, e, quem sabe, ouro jorrando do solo. Cedo esse fascinante sonho se desfez quando eles compreenderam que apenas haviam-se mudado do purgatório para o inferno. (A floresta amazônica é poeticamente cognominada “Inferno Verde”).
Mas, esqueçamos a história e voltemos ao meu… devo chamá-lo “meu querido” bisavô? Nunca vi sequer um retrato seu, pois os judeus marroquinos da época não tinham o costume de se fazer fotografar. Apenas posso imaginá-lo parecido com qualquer homem marroquino.
Pelo que ouvi contar, meu bisavô era moreno, esguio, um homem fino, muito querido pelos seus escravos por sua bondade, educação e maneiras polidas, atributos que o tornaram respeitado pela população local. Mas tenho a impressão de que, com o fim de se manter no mesmo nível social dos seus vizinhos, todos ricos fazendeiros, ele se teria mais ou menos ou aparentemente assimilado, pois era conhecido como “José Luiz”. Seu filho mais velho, Samuel, ingressou no exército brasileiro, na Guarda Nacional. Quanto à minha bisavó, com a beleza combinava bem o seu nome, Graça. O casal veio para o Brasil já com três filhos, dois meninos, Samuel e José, e uma menina, Belízia, de apelido Vida.
Os judeus marroquinos costumam dar às suas filhas nomes expressivos em espanhol, como Luna, Reina, Perla e, mesmo no Brasil, não os traduzem. Além do espanhol, esses judeus usavam na intimidade da família, o dialeto chamado haketía. Mas Belízia só falava português. Ela negava haver nascido em Tânger e afiançava ser brasileira. “Mãe Vida”, como os netos a chamavam, era pequenina, cútis cor de canela, vivaz; tinha os gestos, as maneiras, os hábitos e as expressões de um paraense nato. Poderia muito bem passar por uma graciosa nativa. Seus companheiros de infância, filhos de vizinhos fazendeiros, tratavam-na por “Mana Vida”.
Pelos padrões monetários da época, meu bisavô era rico. Senhor de próspera fazenda, chefe de família elegante, um homem realizado, enfim. Súbito tudo ruiu quando adoeceu gravemente, vítima de béri-béri. Sem recursos médicos onde vivia, foi levado para Londres e nunca mais voltou. Morreu em viagem e seu corpo foi atirado ao mar.
Ficou a viúva muito jovem, inexperiente, para arcar com a responsabilidade de dirigir o engenho. Os jotabs, corretores de casamentos, movimentaram-se e, mais que depressa, arranjaram-lhe o segundo marido. Esse homem, chamado Nahmias, veio a ser o destruidor dos negócios e da família. Para começar, os escravos, não se sujeitando às suas crueldades, fugiram. Os dois enteados, Samuel e José, cedo deixaram a casa, casaram-se premidos por circunstâncias especiais, e ficaram afastados de parentes e correligionários. Ambos morreram muito jovens. A única coisa que minha bisavó Graça sabia fazer na sua desgraça era chorar. Chorou, chorou, até não ter mais lágrimas. E cegou. Sempre a imaginei como uma dessas antigas bonecas francesas, rosto alvo de porcelana, olhos verdes brilhando, parados.
Em realidade ela não era mais do que uma boneca. Era apenas uma doce, ingênua, submissa mulher. A pequena Belízia não herdara a beleza materna, mas era inteligente, viva, decidida. Seu padrasto era ríspido e continuava a desbaratar em viagens e jogatinas a fortuna da família. A fim de escapar do seu domínio e poder legalmente tomar posse da herança que lhe cabia – tinha apenas 13 anos – ela jurou casar-se com o primeiro homem que lhe pedisse a mão, fosse ele embora um “Zé ninguém”. Mas teve sorte. Em vez de um “Zé ninguém”, apareceu-lhe como num conto de fadas uma espécie de príncipe.
Ele tinha 23 anos, era bonito, face rosada, olhos escuros, alto elegante. Era romântico. Falava vários idiomas e era versado no judaísmo. Além do mais, sabia cantar. O Kol Nidrei soava, na sua voz, com estranha e sentimental melodia. Chamava-se David Benoliel. Veio de Tânger, pertencia a uma geração de grandes rabinos e só devia casar-se com quem tivesse semelhantes raízes. Belízia Levy era a perfeita noiva para ele. David era sobrinho do grande Rabino Shemtob e Belízia descendia do Chacham Haim Pinto. Provavelmente o encontro de ambos foi dos meio dos jotabs, pois ela vivia em Muaná, no Marajó, e ele, na área do Tocantins, para onde veio reunir-se à sua irmã mais velha, Paloma, aí estabelecida com o esposo, Maximiliano Bensimon, e um filho, Abraham.
… neste ponto que se inicia a saga da minha família. David Benoliel, seu cunhado Maximiliano Bensimon e um primo, Abraham Larrat, estavam incluídos entre as dezenas de rapazes vindos de Marrocos, durante a segunda metade do século XIX, para a região amazônica. Aí eles aprenderam nova língua, ajustaram-se a uma vida diferente, aí se enraizaram. Aí tiveram e criaram seus filhos. Como sobreviveram às hostilidades do clima, às dificuldades do ambiente, como puderam manter, preservar, transmitir o mesmo judaísmo trazido do lar paterno aos seus descendentes, só pode ser explicado pelo fato de que eles estavam atados de alma e coração à “Árvore da Vida”, a Torá. Poderiam ter assimilado e esquecido tudo, se assim o desejassem.
A vida ao longo do Rio Amazonas é isolada. Quilômetros e quilômetros de água separam uma casa da outra. No entanto, na intimidade do lar, eles mantinham a religião, com todos os seus requisitos. Antes do pôr-do-sol, às sextas-feiras, tudo parava. Não se podia tocar música (em geral, tocavam pequenos instrumentos como violino, flauta, bandolim), não se podia remar nem nadar, enquanto durasse o sábado sagrado. Casamentos e cerimônias fúnebres eram realizados severamente de acordo com as tradições e rituais, alguns místicos. Quando os livros de leitura religiosa escasseavam, eles os copiavam manuscritos, de modo que nada fosse esquecido ou omitido. Durante os dias sagrados, reuniam-se na cidade mais próxima, numa sinagoga improvisada. Nessa ocasião aproveitavam a oportunidade para circuncidar os meninos nascidos nesse ano. Nem todos, porém, tinham possibilidades para tomar parte nessas reuniões. Desse modo, o menino seria circuncidado com qualquer idade, dependendo do momento oportuno que se apresentasse.
Eu própria, por acaso, testemunhei um emocionante acontecimento em Belém. Estava de compras com uma prima de nome Piedade (o anjo benfeitor da nossa família), quando de repente ela lembrou-se que devia ir à sinagoga para assistir, no salão de recepções, à circuncisão dos sobrinhos de uma sua amiga, vindos do interior do Estado. A família vivia num lugar distante e só então tinham conseguido meios para trazer os meninos a Belém com o fim especial de os circuncidar, tornando-os parte de nosso pacto ancestral, desde Abraham Avinu. Para minha surpresa, tratavam-se de garotos entre 8 e 12 anos de idade. Eram três, e o trio mantinha-se unido em silêncio e pavor. Quando um velho contou o número de homens e anunciou – “Já temos minian, podemos começar” – imediatamente travou-se uma espécie de tourada.
Os meninos corriam, gritando, proferindo palavrões, defendendo com as mãos a parte do corpo que devia ser operada, repetindo: “Não me capem!” – e os homens rindo, correndo atrás deles, cercando-os, até que conseguiram aprisionar os três. De pés amarrados, sem anestesia, em presença de todos, um a um foram circuncidados por perito Mohel. Minha prima Piedade era uma verdadeira Tzadiká. Muito religiosa, descendente de Rabi Eliezer Dabela, de quem herdou poderes sobrenaturais, sua presença era requerida porque tinha o dom de abrandar dores e curar certas lesões. Quanto a mim, escondi-me em outra sala, assustada. Mas não ouvi gritos e em um momento, quando as rezas silenciaram, compreendi que tudo havia acabado. Quando fui convidada para tomar parte na festa, fiquei surpreendida ao encontrar os meninos entre os convidados, comendo e bebendo refrigerantes. Já então eles sorriam. Embora vivendo nas brenhas do Amazonas, eles desejavam aquela operação, desejavam ser parte do Brit Milá. Sentiam-se orgulhosos de ser judeus.
Este orgulho, no entanto, não proveio da liberdade com que os imigrantes sonhavam. Eles tinham que lutar para manter o seu judaísmo. O estigma judeu seguia-os até as profundezas da selva. Meu avô e seus amigos eram comerciantes e suas lojas ficavam às margens dos rios, mas cercadas pela mata. E nesses lugares escondidos eles eram alcançados por pogroms.
Assim acontecia. Esses armazéns forneciam comestíveis, roupas, remédios, utensílios, em troca de borracha, castanha, sementes oleaginosas, artigos que eram trazidos pelos nativos. Durante a estação chuvosa, o negócio declinava para ambas as partes. Os contemporâneos do meu avô David sempre lembravam, entre suas anedotas espirituosas, uma que se relacio-nava a essa situação. No tempo do movimento comercial, ele costumava ir freqüentemente a Belém para fazer transações com exportadores e bancos. Um amigo estranhou vê-lo na capital em pleno inverno e perguntou a que viera. “Vim fugindo da safra do ‘me ceda”. “Safra de que, nesta época?”. “Safra do ‘me ceda’, já disse, “me ceda um alqueire de farinha’, ‘me ceda um rolo de tabaco’, ‘me ceda uma manta de pirarucu”…. A verdade é que ele deixara sua casa não somente para escapar à “safra do me ceda”, mas sobretudo para livrar sua família de algum provável pogrom, ocorrido mais nessa época, e chamado pelo povo de “mata judeu”.
Embora não fossem atacados fisicamente, as crianças e mulheres ficavam em tal estado de pavor que geralmente adoeciam. O pânico começava de manhã bem cedo, quando se suspeitava, pelo mutismo do ambiente, ausência de canoas, silêncio absoluto, que algo terrível estava para acontecer. Então às carreiras, a família escondia seus bens mais valiosos. As mulheres e as crianças trancavam-se no dormitório. O dono do armazém abria o Sidur e se concentrava em orações. Quando o cão ladrava anunciando aproximação de estranhos, o homem preparava-se para o confronto. O pogrom, isto é, homens exaltados, invadiam o estabelecimento e procediam à pilhagem. O judeu fingia estar lendo e não se aperceber do que acontecia. Tão pronto os assaltantes se retiravam, a família reunia-se dando “graças a D’s por tudo”, que o mais importante era a vida, e procurava-se esquecer o incidente.
Quando os amigos encontravam-se novamente, discutiam o ocorrido, já em gargalhadas. Cada qual exagerava o montante de sua perda e se jactava do modo como reagira, levando a ridículo uns aos outros. Outras anedotas surgiam dessa fonte nova. Uma das mais conhecidas era sobre um tal Issacar que teria decidido amedrontar os intrusos, recebendo-os de rifle em punho. Quando os ladrões chegaram ele os fez recuar, gritando-lhes – “Aquele que der um passo a frente é homem morto”. Os homens se acovardaram e já iam retirando-se, quando Issacar, explodindo de raiva, falou para si mesmo, mas em tom bastante alto: “Ah, mamzerim! … pena não ter uma bala, senão acabava com todos vocês!”. … de se imaginar o que aconteceu depois dessa confissão…
Pois bem. Apesar de todas as adversidades, estes jovens judeus decidiram ganhar a batalha contra a natureza e contra os homens. Permaneceram no mesmo lugar, trabucando no mesmo negócio durante anos, até haver poupado bastante dinheiro para se mudar para a capital, poder educar seus filhos e abrir caminho para gerações mais afortunadas. Na primeira década do século XX muitos deles já se encontravam em situação econômica folgada e pertenciam à alta camada da sociedade de Belém. Ituquara, Marariá, Cariri e outros “furos” cujos nomes nem aparecem no mapa do Pará eram só lembranças dos tempos idos.
Meus avós paternos, Moysés Levy e Hália Dabela Levy, vieram respectivamente de Rabat e Casablanca. Eram imigrantes também – não de origem espanhola e, por isso, falavam harbía. Eram muito respeitados pelos outros judeus porque minha avó Hália era nobre. Do ponto de vista dos judeus marroquinos, a nobreza é baseada no número ou magnitude de rabinos entre os ancestrais. Minha avó, Hália Dabela, era descendente de Rebi Eliezer Dabela, um rabino a quem se atribuíam milagres. Um deles foi fazer parar uma enchente, marcando com o seu bastão até onde as águas deviam chegar. Usava sempre esse bastão, que se encontra entre seus descendentes em Casablanca, e um colar de âmbar que minha avó Hália herdou e é conservado na nossa família. Esse colar era pendurado na cama dos enfermos e das parturientes pelos seus efeitos milagrosos.
Eu não estaria aqui, agora, se não fosse pela decisão de minha avó, Belízia, de casar, aos 13 anos, com David Benoliel. Foi uma união feliz que ultrapassou as bodas de ouro e da qual houve vários filhos, inclusive Esther, minha mãe. Em sua juventude, Esther era considerada uma das mais belas moças de Belém. Tinha 18 anos quando se casou com Eliezer, único filho de Moysés e Hália Levy, o mais atraente e desejado solteirão (aos 24 anos!) da cidade de Belém. Casaram-se na cidade de Cametá, a 21 de março de 1900.
Sultana Levy Rosenblatt, conhecida colaboradora de Morashá, acaba de completar, em julho último, 90 anos, em McLean, Virginia, nos Estados Unidos, onde reside. Seus escritos encantam familiares e várias gerações de paraenses e amazonenses. … um privilegio tê-la entre nossos colaboradores.
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