Haquitia: Nosso Dialeto Quase Perdido (2)

Por: Yehuda Benguigui

 “…  Haquitía como dialeto, foi para os judeus dispersos da Espanha que se instalaram no Norte do Marrocos, um conforto, um folclore quente e aconchegante, cujas expressões são cheias da seiva que corre vivificante pelas veias de todos os descendentes de Castilla…

… É uma herança histórica inesquecível e que jamais desaparecerá do nosso ambiente familiar e coletivo, sobrevivendo a todas as adversidades…

…É uma corrente de ouro, cujos elos jamais se romperão, …ao contrário, continuarão vivos e fortes em nosso espírito…”

Rabino Abraham Anidjar, no prólogo do Livro do General Bentes “Os Sefardim e a Hakitia” (a).

Cartas Haquitas 

A literatura escrita em Ladino, o judeuespanhol dos paises do Oriente teve uma ampla fase de literatura e publicação de textos deletreado em hebraico, no alfabeto Rashi e posteriormente em caracteres latino.

Enquanto que em vários dos países do império otomano, houveram grandes centros e casa editoriais, muitas delas inclusive controladas por judeus, até finais do século XVIII. Este fator, certamente favoreceu a que pudessem chegar até a atualidade um considerável número de textos e publicações através dos quais se pode analisar facilmente as características do judeuespanhol do Oriente e até mesmo, acompanhar sua evolução até nossos dias.

Tal não ocorreu com o judeuespanhol, falada pelos judeus sefaradim do Norte do Marrocos, ou seja, com a Haquitia. Em Marrocos, não houve um desenvolvimento editorial similar, pelo que os textos se transmitiram por duas vias, basicamente: manuscritos para uso pessoal, correspondencias, etc e a tradição oral.  Os manuscritos, por seu caráter único e efêmero tiveram consevação limitada (b).

É por este motivo, que quando os judeus marroquinos ou seus descendentes desejam dar uma mostra de como se emprega a Haquitía, muitas vezes dão como exemplo uma “carta”(c).

Dessa forma, periodicamente circulavam cartas em Haquitía, a maioria destas  elaboradas de maneira fictícia, escritas em épocas relativamente recentes e quase todas com um caráter humorístico.

Para obter um efeito cômico, os redatores dessas cartas utilizaram uma concentração de palavras ou expressões em Haquitía, incluindo os célebres refrãos, o que torna a leitura fácil e divertida (d). 

Neste artigo, apresentaremos três cartas em Haquitía, sendo uma tipo fictícia e duas delas, cartas autênticas, publicadas como documentos de família e atualmente objeto de estudo enquanto a evolução do dialeto.  Numa próxima oportunidade, publicaremos o listado de palavras e expressões em Haquitía das três cartas, e os respectivos significados.

1- Carta autêntica em Haquitia

A primeira carta, se trata de uma correspondência escrita com muito carinho e emoção e sem nenhuma conotação humorística. Foi escrita em 1914, em Tânger, entre uma tia que permaneceu no Marrocos e seu sobrinho e irmã, que emigraram ao Brasil, radicando-se certamente na Amazônia,  para reunir-se com seus pais que aqui já se encontravam.

Se trata de uma carta escrita em caracteres latinos, mas a pontuação por exemplo, quase inexistente, tem os finais de frases indicado por dois pontos (:), o que faz pensar em uma influência da pontuação hebraica dos livros de textos religiosos e que era muito comum na forma de correspondências quando deletreado em ivrit, no alfabeto Rashi.

O que confere um carater particular à esta carta é sobretudo o estilo das frases e a preseça de numerosas expressões e fórmulas de carinho específicas da comunicação em Haquitía.

A carta foi publicada inicialmente por Gladys Pimienta, pesquisadora reconhecida de Haquitía e colaboradora freqüente de “Aki Yerushalaim” (e). Consta, que o documento original foi entregue pelo Sr Moshé Auday z’l, em Israel, autorizando que a mesma fosse utilizada em estudos e pesquisas en pró da manutenção da Haquitía. Por tratar-se de um documento de cerca de 90 anos, aproveitamos para publicar uma cópia de parte do têxto.

                                                                                       Tanger 24 Julio 1914

Muy querida y apreciable hermana y hermano y muy queridíssimo y adorado sobrino de mi alma y de mi corazon espero que el recibo de esta se encuentren gosando de la  mas perfecta salud y todos sanos y buenos como mi corazon desea amen. yo sigoy bien para cuanto gusteis mandar:

Recibi tu carta por la cual veo que ya estais todos unidos mejorado bos reunais a qui con nosotros y estemos todos juntos con favor de Dios para que se cumplan mis deceos amen. querido Mesod no te puedoy decir por escrito la alegria tan grande que me causo tu carta al ver que ya estais juntos con tu padre espero en Dios que estís sanos y buenos y sea por bien lo que me dices que bos bais a donde esta tu padre … Mi alegria Mesod asi meballa yo por ty que agas todos tus posibles por benirbos pronto…

… espero tambien le digas a tu padre de mi parte y de la de Jacob … que me supongo estara muy contento y muy satisfecho de tener un hijo como tu, que el Dios del cielo te mehade de todo lomalo y de ojos malos …

… cuando me escribais otra ves dime como estais en ese pueblo y que tal es y que es el negocio que aceis: mandamelo a decir todo claramente pa que yo este un poco tranquila y dime tambien que son las comidas que se comen en esa y la ropa que usais y como vos encontrais de salud : espero en Dios y  en los sadiquim que estarais sanos y buenos siempre y que ellos vos alluden para benirvos pronto todos, con  favor de Dios:

…mi alegria Mesod, me baya yo por ti, que me parece mentiras que estas tan lejos …lo unico que pido a cada momento es que estis sanos y guenos y bos abra puertas de luces para que bos bengais pronto, con la ayuda de Dios que asi sea…

…mi gueno Mesod asi me baya yo por ti, cuando me escribas otra vez manda una cartita para Clara y otra para hermana Reyna e a Jacob tambien por separado y las memorias tambien ponlas con sus nombres para cada uno de ellos tedigo esto por que se shenfean de que no los escribes a ellos y a otros si :

… sin mas por ahora mi queridissima hermana y cuñado les doy un fuerte y cariñoso abrazo, a qui todos os asaludan:

…Mesody y Sadita os dan mucho recuerdo hermana Esther mi prima os da memorias … y tu querido sobrino recibe un fuerte abrazo de tu tia en union de tus queridos, con favor de Dios como yo deceo amen :
                                                                                      B. J. A.

2- Carta autêntica em Haquitía

Uma característica interessante das cartas autênticas em Haquitía, intercambiadas entre parentes e amigos era o fato dos mesmos se expressarem de uma maneira espontânea e direta, quase que em um estilo considerado intermédio entre a língua escrita e a falada. Pela similitude que apresentam com as expressões orais, essas cartas representam, mais que outros documentos,  um testemunho vivo sobre a forma como o dialeto era falado em épocas mais antigas.

As cartas apresentavam uma forma própria na introdução e também ao concluir, que aparecem invariavelmente.  A carta que apresentamos a seguir, na verdade é um texto de um cartão postal, e se trata de um excelente exemplo para  ilustrar como a Haquitia também era comumente utilizada no alfabeto Rashi, em caracteres hebraicos. O original foi publicado em “Aki Yerushalaim” (f), enviado pelo Sr Serge I. Maudy, residente  em Villeurbanne, França.  O original, pertence atualmente ao Centro de Documentações do  Instituto Maalé Adumim, em Israel.  Pela raridade do documento, estamos publicando o original que foi escrito em ivrit deletreado no alfabeto Rashí.

O documento, que aproveitamos para reproduzir, é cópia do cartão postal que em 1917,  Ytzchak El Maudy  enviou a seu pai, Shalom, desde Sallauminis onde se encontrava. Essa localidade, situada no norte da França, em 1917, ou seja durante a Primeira Guerra Mundial estava justamente em frente ao famoso “Chemin des Dames”, onde naquele ano se travaram sangrentas batalhas. Ainda que nada o indique nesse cartão postal, aparentemente Ytzchak El Maudy foi mobilizado como soldado francês e enviado àquela região.

Por sua vez, Shalom, o pai, vivia com sua familia em Nemours, uma cidade da região de Oran, na Algéria, situada bem próximo da fronteira do Marrocos. A família Maudy, de origem marroquina, foi parte de uma leva migratória, que atraidos por melhores condições e possibilidades na Algéria francesa, deixaram o Marrocos para instalar-se naquele país, mais particularmente nas cercanias de Oran.

Em seu novo lar, estas familias conservaram as antigas tradições e costumes, assim como sua língua, a Haquitía, que a chamavam “el tetuaní”, em lembrança a sua cidade de origem.

Uma das coisas que  sobressaem desse cartão postal, é o grande número de expressões em forma de “rashei tevót” (iniciais). Isso nos indica qaue os Maudy vinham de família de pessoas letradas em “lashon hakodesh”, em ivrit, apesar de que alguns dos nomes ai mencionados, como Albert y Reinette, já indicam, que a cultura francesa já os havia marcado com sua influência.

Enquanto à Haquitía, está presente ao largo de todo o conteúdo em formas antigas como: “mos”, “vos”, “ansí”, “bendizga”, “ferazmal”, “ima”,  “zehutes”, “barkearlos”,  etc.

                                                         Sallaumines, le 16 mars 1917
Yedi”N (Yedid Nafshí), ve-hon (honorable) adoní abí K”H”R (Kebod HaRab)

S. Shalom El Maudy HY”O (Hashem Yishmeréhu Ve-yehayehú).

Nemours

Muy querido y apreciado padre sirve la presente a darvos saber que Sh”L (Sheva LaEl) estoy bien y espero que la presente vos halle gozando de la mas cabal salud AKY”R  (Amén Ken Yehi Ratzón) y en compañia de toda la família
.
Esta postal presenta como nuestro Yossef Hatzadik A”H (Alav Hashalom) presento sus hijitos Menashé y Efraim a su padre Yaakob abinu A”H (Alav Hashalom), para barkearlos.

Ansi con sus zehutes HSh”Yt (Hashem Ytbarach) vos bendiga y mos bendisga a todos Israel AKY”R (Amén Ken Yehi Ratzón).

Ve-Sh”R (Ve-Shalom Rab) yo vos bezo las manos a ferazmal y ima. Lotanto a Yahia Rachel y los crios memorias a Esther y los crios lotanto a Shalom Za’harí y los crios lotanto a Albert Reinette Chaym y Clara mis bendiciones. 
                                                                                                   Ytzchak  El Maudy

3- Carta Haquita fictícia

A carta fictícia que publicamos a seguir, é de autoria da escritora Sultana Levy Rosenblatt (g), que com seu conhecimento de Haquitía como falado em Belém enquanto residia nessa cidade até a década dos anos 40, produziu esta pérola de demonstração do uso do dialeto. Tive o privilégio de receber cópia da mesma das mãos de D Sultana, bem como as informações das circunstâncias em que a redatou. Esta carta está incluida na tese de mestrado de Adriana dos Santos Romero, pela Universidade de São Paulo, em 1999 (h).

Foi escrita por D Sultana, para ilustrar à Profa. Regina Igel, da University of Maryland, acerca do uso do dialeto contribuindo com esta referência, ao artigo que essa pesquisadora publicou: “Haquitía as spoken in the Brazilian Amazon”, em 1998 (i).

Mamá, mi vida,
                             Que el Dio te hadee y nunca me faltes. Mas negro que un carbón seria mi mazal si no te tuviera a tí para oír mís caarás.

Ahora tehago el cuento de lo ha pasado en el Shabat. Go por mi. La dafina me salió shebda y Ferazmal levantó un gueruz. Se ha puesto un Hamán, por todo se ensaña y me saca un vacio todo lo que hago por él. Ya sabes como lo cevo que se ha hecho un Barragán. Mahalea Babá y sus hijos hasta erutar y le digo- calzeando- “berahah y provecho”- pero dacá que no hago como hacia la descansada su madre, y le estoy matando de hambre. No bale lo que me arqueo pa que todo salga lucído, mas ahora, que tenemos una vecina hadraquia que todo lo habla, todo que hacemos escucha, hasta un safon no deja pasar. Pero cuando Ferazmal se genea, le entra el huerco. Le pido- Ahlas, no és hobá que la sahená te oyga- pero el de tenikut alza mas la voz, tira las cosas, hace una guezerá como se estuviera me dando una treja. Ansina hizo el Shabat, me harpeo cabe la manzerá goyá, que se lleno de aljeña. Y eso que zemá habia venido de meldar y ptnear en la Esnoga. Queda entenido porque le hacen cabod por su sabiduria de la Torah, y le tratan de Rebí, kalek. Se vieran las pirzás que me hace, no me foquea en nada de nada, ni siquiera ftnea las matanzinas que me doypa que tenga todo de bueno el Rebí de hará, plastado el hondón en la silla todo el dia meldando. Luz de la calle, tiniebras en su casa. Mejor me hubiera quedado sola que vivir este negro mazal. Bien pudiera estar con lo mejor de mis iguales sacando provecho de mi juventud. No sé que le dió a Ferazmal papá de esa ajasrás de me casuiar. Lamargo, por tener menos una boca a mantener, seria. Yo pudiera con mi labor ayudarlo hastá que Dios  me mandara un buen mazal. Y porque, no? No soy horobada, ni tullida. Mire a Freha, con la janona que tiene y lo selteada que era y que lucero le tocó. Y como la fechea! La cubre de alhajas, zamá pa lucir su hermoso hial. Y mire yo, la hala demudadaque tengo ahora. Siempre me decias que no querias junteras con los hosmines esos, que el padre charbeaba y tenia una hermana nishkahá, que la madre era una charfa  fedionda, que los abuelos cargaban barriles de hará en Chechuany aca se alzaron con halampinas. Ya me alegrí de venir de hahamim y no pasar de aniim. Ferazmal papá, salido del mal, se arqueó en su labor pa ese guenab que le sacó el cuero tantos años y lo boto así no mas. El manzér, que le caiga el mazal, y no vea luz ni claridad hasta que se levanten los malogrados.

Mi lucero es Reinica. Te voy a mandar su estampa pa que veas como se parece, mas vida tenga ella, con la descansada tia Perla. Su misma cara de luz y su corazón de hahamá. El dia de Purim cumplió tu mano, mejorado viva cien años, con alegrias y un claro mazal.

Bueno mamá, perdona te molestar con mis caarás. Que el Dió saque a luz a Ferazmal papá y no se olvide de me hechar beraháh pa que me aclare mi mazal. Al-Dió por poco se me olvida decirte que estoy de antojos. Mejorado venga el Rogalon que tanto desea Ferazmal y por no tenerlo es que vive empojiñado.

Reinita escapada de mal es sanita, pero muy honica, me guesdreo pa hacer con que coma. Ahora Ferazmal no sé de que guyas me sacó una prima, una sharfa que se pone a hadrear y mahalear. Un hial de manzia que se coje con Reinica y le pongo cinco sobre su cara pa que no le heche ainará. Me antojé de dulce de berenjena,me lo hice, ella vino, se me darbeó todito. Esa es la ayuda que me trae Ferazmal. Tu hija que tiene el alma arrancada por ti.

    Hadra.


Referências Bibliográficas

a- Bentes, Abraham Ramiro – “Os Sefardim e a Hakitia”, Mitograph Editora, Belém, Pará, Brasil, 1981.
b- Diaz-Mas, Paloma – “Los Sefardies: Historia, Lengua y Cultura”, Barcelona, Espanha.
c- Bendelac, Alegria Bendayan de – “Los Nuestros: Sejiná, Letuarios, Jaquetia y Fraja” – Un retrato de los Sefaradies del Norte de Marruecos a través de sus recuerdos y de su lengua (1860 1984), New York, USA, 1987.
d- Benguigui, Yehuda – “Haquitía: Nosso Dialéto quase Perdido (1), em: Jornal Amazônia Judaica, Ano II, Número 13, Belém, Pará, Abril 2003.
e- Pimienta, Gladys – “Una Letra en Haketía”, en: “Aki Yerushalaim”, Anyo 16, No. 51, Jerusalém, Israel, 1995.
f- Pimienta, Gladys – “Correspondencia en Haketía entre Francia y Algeria”, en: “Aki Yerushalaim”, Anyo 24, No. 71, Jerusalém, Israel, Marzo 2003.
g- Rosenblatt, Sultana Levy – “Entrevistas e Depoimentos sobre Haquitía e Episódios sobre a  História da Comunidade Judaica de Belém”, McLean, Virginia, USA,  1998 – 2003.
h- Romero, Adriana dos Santos – “A Sobrevivência da Música Tradicional Sefardita dentro das Comunidades de São Paulo e Belém do Pará” – Tese de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1999.
i- Igel, Regina – “Haquitía as Spoken in the Brazilian Amazon”, in: “From Iberia to Diaspora”, Ed by Y. K. Stillman & N. A. Stillman, Leiden, (The Netherlands), Brill, 1998.
j- Bengió, Bella Benchimol – “Entrevista e Depoimentos sobre Haquitía e episódios da História dos judeus no Norte do Marrocos”, Tânger, Marrocos,  Março 2002.