História das Comunidades
“Los Nuestros” Os marroquinos na Amazônia
Por: Reginaldo Jonas Heller
A imigração dos judeus marroquinos para a Amazônia, na segunda metade do século 19 e início do século 20, dificilmente seria mais bem compreendida se não nos maravilhássemos com a aventura daqueles milhares de jovens que buscavam vida nova no Novo Mundo ou para cá vieram em busca do Eldorado. Parte da grande epopéia do sefardismo ocidental.
A guerra hispano-marroquina, em 1870, ou a pobreza das comunidades judaicas no Marrocos, espalhadas pelas áreas de influência espanhola, como Tânger, Tetuan ou Casablanca, e árabe, como Rabat, Fez e Marrakesh, entre muitas outras, poderiam ser apontadas como fatores que motivaram a saída dos judeus naquele tempo. Além disso, novas nações independentes se formavam na América, oferecendo plena e igual cidadania a todos, inspiradas pelos princípios das revoluções Americana e Francesa; ou, ainda, a Aliança Israelita Universal, entidade criada por filantropos judeus para levar a cultura francesa a todas as comunidades sefarditas, poderiam, também, ser apontadas como fatores que induziram à emigração.
Mas foi a explosão da borracha como matéria-prima industrial que, efetivamente, atraiu milhares de aventureiros do mundo inteiro para a Amazônia, em busca das riquezas que jorravam dos seringais. E os judeus não estavam excluídos desta corrida. Em outros tempos, o Eldorado era constituído pelo açúcar ou pelo intenso comércio que resultava da exploração da prata na América Espanhola. Foi quando os judeus portugueses, apoiados pela comunidade de Amsterdã, construíram no Caribe importantes comunidades, de onde contribuíram com recursos e congregantes para a formação do nascente judaísmo norte-americano.
Cem anos depois, a corrida pelo ouro extraído da selva tinha seu pólo no Pará e Amazonas e se estendia até o Peru, onde, na longínqua cidade de Iquitos, algumas centenas de judeus, navegando rio-mar acima, lá se estabeleceram. Não que, antes, não houvesse judeus na Amazônia. Cinco décadas antes da independência, algumas centenas de cristãos novos foram trazidos do Marrocos (Mazagão) por iniciativa do então ministro do rei D. José de Portugal, o famoso Marquês de Pombal, para colonizar o Pará. Alguns de seus descendentes, retornados ao judaísmo, teriam-se juntado ao pequeno grupo que chegou logo após a Independência para formar a primeira sinagoga.
Certamente, uma das casas em que aquele primeiro minian se reunia era a de José Banjó, um sobrado onde ele tinha seu comércio, à Rua do Pelourinho (hoje Sete de Setembro). Assim teria surgido a primeira casa de oração, em 1824, a “Shaar Hashamaim”, liderada por Abraham Acris. Ainda não era uma sinagoga, pois a Constituição do Império, apesar de facultar o livre exercício da religião, proibia templos não-católicos. Somente anos depois, a sinagoga foi construída. Já na segunda metade do século, surgiu a sinagoga “Eshel Abraham”. Não há, contudo, documentação sobre os primeiros tempos de ambas, ficando os registros restritos à tradição oral.
Logo vieram outros judeus sefarditas, tanto ingleses para atuar como representantes comerciais, como magrebianos (do norte da África) para construir nos trópicos um novo lugar. Jacob Gabay e Luiz Manfredo Levy já eram, em meados do século 19, proprietários de fazendas e engenhos no Pará. E, tal como “seu Luis” Levy, no Marajó, eram senhores de escravos. A maioria, no entanto, se dedicava ao comércio, incluindo a exportação das chamadas “drogas do sertão”.
A essa época, a comunidade já tinha sua organização bem avançada, tanto que em 1848 inaugurava o primeiro cemitério judeu do Brasil independente, anexo ao da Soledade, em Belém. Ainda hoje se pode visitar os 28 túmulos ali existentes.
Uma aventura que começava com a troca do cáften por um chapéu, ainda no porto de embarque, e a quipá por baixo; o vestuário judeu-marroquino era substituído por um terno flamengo e uma disposição quase heróica para enfrentar uma viagem de dois meses de navio, não raro cheia de imprevistos e desconfortos, até chegar a Belém. E, muitas vezes, de lá seguiam em pequenas embarcações, nos batelões, pelos rios da região até o interior, nas pequenas cidades de Alenquer, Santarém, Parintins e muitas outras, onde, quase sempre, eram esperados por parentes que ali já estavam. Isso quando não ficavam em Belém ou em Cametá, que, então, rivalizava com a capital, e onde se constituiu uma importante comunidade.
Vinham solteiros, nem sempre para ficar, mas para retornar ricos ao nostálgico Marrocos. Afinal, o mellah está, para o marroquino, como o shteitl para o asquenazita do leste europeu: era mais do que um lugar, era a bait (a casa). Essa lembrança acompanhava aqueles jovens e, mesmo nas longas viagens pelo interior dos seringais, comprando pélas de borracha ou a safra dos castanhais e vendendo subsistência à população cabocla – afinal diz-se que foram os primeiros “regatões” pelos rios da Amazônia – jamais esqueceram o mellah. Mas, a realidade era muito diferente dos sonhos e, na maioria, os planos não saíam como previsto. Foram ficando por aqui, chamando irmãos para ajudar no comércio e depois os pais, para reunir a família. Os amigos e outros parentes seguiam os passos dos pioneiros e vinham atrás, em busca do mesmo sonho de “fazer a América”.
A preocupação em se adaptar, sem perder a própria identidade, fez com que adotassem estratégias diversas de relacionamento com a sociedade em torno. Alguns traduziram seus nomes para se parecerem menos diferentes, como, por exemplo, Elmaleh para Salgado ou Bar Moshé para Alves; ou rapidamente participaram da vida política local, como o major Eliezer Levy, duas vezes prefeito de Macapá e até hoje lá lembrado com nomes de logradouros públicos; ou Moisés Afatlo, vereador e político de Cametá, e Moysés Levy, filho de Eliezer, prefeito de Igarapé-Mirim. Mas, também, participavam de um quase inédito, até então, e informal diálogo interreligioso. É o caso de Maria (ou Miriam) Sabbá, a mais nova dos seis filhos de Jacob Sabbá, de Cametá, quem, em Belém, era quase que venerada pelo seu trabalho junto a instituições de caridade, conforme depoimento do cronista paraense, Eidorfe Moreira. Em 1917, Eliezer Levy liderou a comunidade de Belém no apoio à Declaração Balfour e editou por muitos anos um jornal comunitário e sionista, o Kol Israel. Apesar do convívio cordial, os judeus foram, eventualmente, alvo de manifestações de intolerância.
A primeira do Brasil independente ocorreu em 1832, durante a revolta paraense conhecida como Cabanagem, quando dois judeus e alguns ingleses foram mortos numa onda de xenofobia contra estrangeiros. Mas o horror, mesmo, ocorreu em 1901, nas localidades de Cametá, Baião, Mocajuba, Araquereruba, Mangabeira, Prainha, avançando pelas margens dos rios, onde os judeus tinham suas casas-armazéns, geralmente nos igarapés do “jacob”, do “isaac” ou do “moisés”. Foi quando ficou conhecido o episódio do “mata-judeu” e o massacre de Massauari, em Maués. Em Cametá, a anterior tranqüilidade dos Sabbá transformou-se, repentinamente, em pilhagens e saques do comércio judeu, fazendo com que, na época, a comunidade buscasse refúgio em Belém.
Mas, de um modo geral, os judeus marroquinos que vieram para a Amazônia conseguiram se adaptar bem às novas condições. Eliezer Salgado (Elmaleh) trabalhava no regatão, no rio Purus, para sustentar nove filhos. Servia, também, de chazan e mohel, oficiava casamentos e brit-milot e, em sua casa, como em outras ribeirinhas, oficiavam-se os serviços de Rosh Hashaná e Yom Kipur, segundo relato de seus filhos e descendentes.
Para esses judeus marroquinos, a família era o núcleo a partir do qual construíam sua judeidade em plena Amazônia. A identidade judaica não era apenas profundamente enraizada, mas admitida com orgulho e alegria. As histórias contadas pelos descendentes remetem à tradição dos antepassados: os que moravam longe pegavam seus batelões para passar os Yamim Noraim nas cidades maiores, como Alenquer ou Cametá. Na sexta-feira à tarde, depois de fechar a loja, iniciavam-se os preparativos para o Shabat com toda a hiba (pompa), vestindo-se de linho branco, engomado, e gravata. A mãe, numa cadeira de espaldar, punha-se a meldar (rezar) e pitnear (cantar) o Shir Hashirim (Cântico dos Cânticos), mizmorim (canções) e, durante o Arbit (reza da noite), reuniam-se em casa de um ou outro.
Mesmo na ausência de rabinos, os shlichim zelavam pelo rigor ritual, incluindo a lavagem do corpo e providências para o enterro. Ainda hoje sobrevivem como testemunhos da presença judaica na região os cemitérios de Cametá, Óbidos, Itaituba, Santarém, no Pará; e Parintins, Maués, Itacoatiara, Manacapuru, Tefé, no Amazonas; e, ainda, Iquitos, Contamana, Yurimaguas e Caballococha, no Peru. Os mesmos shlichim cuidavam do ensino de hebraico para os jovens, das cerimônias de casamento e brit-milá, além do culto e das orações. E, não raro, consultas aos rabinos e Chachamim que permaneceram no Marrocos. Há até uma responsa solicitada pela comunidade paraense, do rabi Itzchak (Ualid), grão-rabino e Av do Beit Din (chefe do Tribunal Rabínico) de Tetuan, publicada em Livorno nos anos 1855 e 1876.
Os tzadikim eram venerados e dentre eles destacava-se Shimon Bar Iochai. À mesa, a cashrut era adaptada às condições locais, sem ferir a Halachá. Em vez do vinho, a cachaça, as frutas tropicais e peixes para substituir as iguarias marroquinas. Com exceção da dafina e do couscous, de que não abriam mão de forma alguma. Os filhos aos poucos deixavam de falar o Haquitia, uma mistura de árabe, hebraico e ladino, mantendo apenas expressões muito significativas e sem paralelo em português (como traduzir, por exemplo, achlash, fecheado, abu, chosmin e sachorita?), e o ladino ficava como uma segunda língua falada em casa, entre los nuestros e cada vez menos. Com o fim da riqueza propiciada pela borracha, muitos judeus abandonaram o “sertão” e se estabeleceram em Belém ou emigraram para o sul.
As novas gerações se destacaram nas diversas profissões e na vida social de Belém e Manaus. Mas, não poucos permaneceram embrenhados na selva, naquelas pequenas vilas amazônicas, onde constituíram famílias e seus descendentes são conhecidos, hoje, como os “hebraicos”, embora poucos guardem ainda as tradições de seus antepassados.
Um típico exemplo do “hebraico” do Amazonas é Paulo Sicsu, que vive em Parintins. Todo ano ele vai ao cemitério judaico local, com suas 66 sepulturas de judeus marroquinos, reverenciar a memória de seu bisavô, Abraham Joseph Sicsu. O jovem fotógrafo Paulo conta que seu bisavô veio de Tânger e, à época, mantinha suas tradições, convivendo na pequena comunidade local; mas, com o tempo, à medida que escasseavam os judeus e o minian já era difícil, ele foi relaxando e abandonando as práticas religiosas.Casou com uma não judia, típica amazonense, tiveram cinco filhos, crescidos fora do judaísmo. No tempo em que seu pai, neto de Abraham, ainda era criança, os contatos com o judaísmo e a comunidade judaica tornaram-se cada vez mais raros, até desaparecerem.”Eu continuo vindo aqui, em busca de minhas tradições”, disse ele num encontro, em 1986, com o rabino Jacques Cukierhorn que, na ocasião, “ciceroneava” o escritor norte-americano James Ross. E, para surpresa de seus interlocutores, Paulo aprendeu, naquele momento, a ler um kadish.
Um fenômeno que retrata esse casamento entre a cultura judaica e a sociedade local é o caso do rabi Shalom Emanuel Muyal (Morashá nº 53) que veio a Manaus, em 1910, para angariar fundos para uma ieshivá no Marrocos (ou em Jerusalém, não se sabe ao certo) e lá morreu acometido por febre amarela. Foi enterrado no cemitério cristão, pois não havia, então, cemitério judeu em Manaus, e, quando seu sobrinho, ministro de governo do já criado Estado de Israel tentou seu translado, mais de 40 anos depois, o governo do Amazonas pediu-lhe que não o fizesse, pois o referido rabino era considerado um santo pela população local. Embora sua sepultura tenha sido, posteriormente, transladada a um apropriado cemitério judaico, anexo ao católico, o “santo rabi” é, ainda hoje, muito venerado pela população local.
Hoje, a comunidade de Belém conta com cerca de 300 a 400 famílias; a de Manaus, com 200 famílias. Há uma integração completa no novo ambiente, sem perda, contudo, da identidade ancestral. Exemplo mais brasileiro do judeu marroquino, é o atual presidente do mais popular clube de futebol do Pará, o Remo, Raphael Levy, judeu de quarta geração e, ainda, expoente da comunidade local.
Haquitia: um dialeto quase perdido
Com esse título, Yehuda Benguigui, um descendente de judeus marroquinos no Pará, escreveu uma série de artigos sobre esse “dialeto judeu-espanhol falado pelos judeus do Marrocos”, conforme definição do “Dicionário de la Lengua Española” publicado pela Real Academia Espanhola. Graças à sua pesquisa, podemos resgatar um pouco deste linguajar caseiro que marcou gerações dos “de los nuestros”.
Para se ter uma idéia, reproduzimos a seguir um trecho de uma carta fictícia escrita por Aziza Serruya Benguigui, que bem ilustra o encanto deste ladino arabizado:
“Pero, como nada es completo, al segundo dia del seder, binieron los de Doña Paquita. Unos regalados… El abuelo, simpre haciendo mahloquet com ferazmal Babá sobre toda cosa, no deja escapar nada, todo le molesta: sus darushesh, como ptnéa, los pesukim que dice y hasta como melda. Trajo um Hagadah tan bieja y maltratada que parecia que la havia sacado de um guenizah…Itzchakito uma vez más lloró cuando cantamos el Had Gadia. Le dá manzia com lo que le pasa com el cabritito que la kadeó el gato. Ahora quedo shenfeado com los gatos…Escapado de mal! […] Que el Dio te cubra de um buen mazal y te libre de los resaim.”
Benguigui reproduz, também, um episódio narrado por Reuben Tobelem sobre um casal que de tanto ir a mishmarot, o marido ouviu sua mulher reclamar que não tinha mais roupa para tantas mishmarot. Ele, então, lhe trouxe “una falda negra y uma blusita blanca, muy apropriadas para sepillios e mishmarot” e disse: “Mejorado que nunca lo uses en tu vida”.
Apesar de não mais falado, o Haquitia é ainda uma espécie de código peculiar para expressões jocosas, para maldizer ou ironizar, mas acima de tudo para manter viva uma sabedoria ancestral dos descendentes dos judeus marroquinos.
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