Migrantes e Imigrantes Judeus Marroquinos São Paulo e Rio de Janeiro
Por: Rachel Mizrahi
Embora minoria no conjunto imigrante, os judeus que se estabeleceram em São Paulo e Rio de Janeiro a partir da primeira década do século XX, identificados pela fé e tradições milenares, diferenciavam-se pelo idioma, traços culturais e tipo físico. Enquanto os ashquenazim, procedentes das comunidades judaicas da Europa Oriental, se expressavam em iídiche, os sefaradim, o faziam em ladino e, os judeus orientais, em árabe.
Condições históricas e culturais permitiram que os judeus ibéricos se evidenciassem pelo cosmopolitismo e liberalidade, enquanto os ashquenazim e os judeus orientais no conservadorismo. Economicamente melhor situados, os sefaradim, procedentes de cidades otomanas de refúgio (Esmirna e Istambul), escolheram residir em bairros aprazíveis e residenciais de São Paulo e Rio de Janeiro.
Fiéis observantes da religião e, comumente dirigidos por eminentes rabinos, os esmirlis de São Paulo conseguiram contratar o rabino Jacob Mazaltov, natural de Istambul e que prestara serviços à comunidade sefaradi de Montevidéu. O religioso marcou época na sinagoga da Comunidade Israelita Sephardi, inaugurada em 1929. Em cerimonial solene, trajando vestes brancas, preocupado com o entendimento das rezas, Mazaltov as interrompia para explicar seu significado aos presentes, fato que conduziu à sinagoga judeus de várias procedências, sobretudo depois da criação do Centro Recreativo Brasileiro Amadeu Toledano, o CIBAT.
Instalados em São Paulo a partir da primeira década do século passado, os imigrantes sefaradim do Oriente Médio caracterizaram-se por abrir as portas de sua sinagoga a todos que a procurassem, possivelmente inspirados pelo Profeta Isaías que pressagiou “que minha casa seja a casa de oração para todos os povos”, dístico colocado na entrada do edifício da Sinagoga Beth-El do Rio de Janeiro. Assim construída, a sinagoga sefaradi paulista recepcionou judeus a partir de 1930, procedentes da Itália, Grécia, Bulgária, antiga Iugoslávia e ashquenazis alemães, de linha liberal – imigrantes e refugiados em apoio diante das perseguições antissemitas, perpetradas pelo Nacional Socialismo Alemão em seus países de origem.
Descendentes dos judeus marroquinos do Norte brasileiro, que escolheram transferir-se para o Rio de Janeiro, surpreenderam-se com a antiga União Israelita Shel Guemilut Hassadim, sinagoga construída por imigrantes alsacianos, oficializado pelo Imperador D. Pedro II, em 1873. Entre os que se filiaram à sinagoga, estava David José Pérez, nascido em Breves, no Pará. Pérez decidira instalar-se no Rio de Janeiro, depois de completar estudos nas yeshivot da cidade de Tânger, cidade natal de seu pai que o acompanhara. No Rio de Janeiro, Pérez dedicou-se à docência em escolas oficiais e particulares, chegando a emérito professor do famoso Colégio Pedro II. Depois do curso de Direito, doutorou-se em Ciências Econômicas, partindo para uma brilhante e elogiada carreira profissional e se projetando na vida cultural do Rio de Janeiro por artigos publicados em jornais da capital fluminense1. Em 1916, fundou “A Columna”, jornal mensal escrito em português sobre assuntos judaicos e sionistas. O humanista Álvaro de Castilho era seu sócio e colaborador2. Os artigos desses diretores objetivavam esclarecer o público sobre o judaísmo e a história dos judeus no Brasil e outras localidades da diáspora. Em 1922, Pérez aceitou dirigir a Escola Maguen David, primeiro estabelecimento de ensino judaico no Rio de Janeiro, do qual surgiu o conhecido Colégio Hebreu Brasileiro.
A partir dos anos 20, a Shel Guemilut Hassadim recepcionou as famílias dos Azulay, Bemerguis, Abecassis, Benzecry, Bensussan, Benarrosh, Zagury, Benoliel, Benchimol, Benjó, Bentes, Garson, Ezagui, Obadia e os Eshrique, migrantes judeus da Amazônia brasileira que, aos poucos, passaram a predominar nos cargos diretivos da sinagoga. Yomtob Azulay, por exemplo, chegou a presidi-la por 38 anos depois da transferência da sinagoga para Botafogo. Os marroquinos diferenciavam-se por escolaridade em Universidades européias: os irmãos Rubem David, Elias e Jacob Azulay destacaram-se na área médica (dermatologia e psicanálise), enquanto Rubem David Azulay ocupou a Presidência da Academia Brasileira de Medicina.
Dos migrantes marroquinos que se estabeleceram na sinagoga sefaradi de São Paulo, sob cuidados de Mendel Wolf Diesendruck, prestigioso rabino austríaco, citamos os Athias, Levy, Alves, Bensadon e os Mellul. A franca recepção sefaradi aos marroquinos era motivada pela lembrança dos antigos diretores, como Amadeu Toledano, judeu da Ilha de Malta, que muito batalhou pela construção da sinagoga sefaradi em 1929. Do grupo dos migrantes, destacamos Eliézer Moysés, nascido na região amazônica em 1878. Na terra de origem, salientou-se por servir o batalhão da Guarda Nacional criada pelo Imperador D. Pedro II, em que atingiu patente de Coronel. Ao candidatar-se para Prefeito de Macapá, elegeu-se. Conhecido como “Major Levy”, manteve-se na função pública do Território do Acre de 1932 a 1947. Em São Paulo, sua filha Rachel casou-se com Siegbert Simon, de origem alemã, que chegara a São Paulo e se mantinha na sinagoga sefaradi desde 1936. Formado na Alemanha, de cultura diversa, Simon adaptou-se aos costumes judaicos da esposa, trazidos da Amazônia marroquina. O mesmo acontecera com Carlos Kertész, cujo pai era procedente da comunidade judaica húngara e a mãe, da marroquina família Mellul, nome aportuguesado para Mello.
Carlos Kertész pertence à quinta geração brasileira das famílias Melul de Tânger e Aferiath de Mogador, pois seus trisavós, bisavós e avós já haviam nascido no Brasil. A família aportara no Brasil em 1824. A crise da borracha os levou a se transferirem de Belém do Pará para Fortaleza e, depois, a Recife, até decidirem fixarse em Salvador em 1920. Seu irmão, Mário de Mello Kertész elegeu-se prefeito da cidade, em duas oportunidades, na década de 1980. Carlos Roberto de Mello Kertész, que por seis anos dirigiu a comunidade judaica da Bahia, reside hoje com a família em São Paulo e é vice-presidente do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro.
Outro emérito participante da sinagoga foi Isaac Athias que, antes de se estabelecer em São Paulo, passara por Recife onde conheceu e se casou com Amélia Dimenstein, estudante de Medicina. Parente de Elisia Sarraf Hakim, Athias associou-se, em São Paulo, a Moisés Hakim, proprietário do “Ao Moveleiro”, famoso estabelecimento comercial de móveis para escritório. Athias conseguira, ainda no Norte, formar-se em Contabilidade. Sua formação religiosa foi exemplar, por ter sido aluno de Elias Israel, considerado um Tzadic, pela dedicação aos estudos e preocupado com o ensino das tradições judaicas às crianças judias na cidade de Belém. Era filho de Leão Israel, de prestigiosa família que negociava o látex. Seu pai lhe proporcionara esmerada educação em centros judaicos da Europa. Em busca do conhecimento, as crianças locomoviam-se em barcos através dos rios – caminhos naturais da região, percorrendo distâncias enormes para estudar, sob os cuidados de Elias Israel e sua esposa Sol, da família Mamann Bendrihen. A religiosidade de Isaac Athias permitiu que assumisse o cargo de secretário da Congregação Sefaradi de São Paulo, na gestão de Moisés Carmona. Por falar fluentemente o português, Athias passou a liderar a comunidade que o acolhera, em órgãos administrativos judaicos como a FISESP e a CONIB em âmbito nacional.
Outro sefaradi de destaque foi Moisés Hakim, nascido em Esmirna, que chegou ao Rio de Janeiro em 1922, procedente do Egito, atendendo ao chamado de seu tio materno, Joseph Aliman. Em São Paulo, Moisés Hakim casou-se com Elísia Roffé Sarraf, filha de antigos moradores judeus de Belém do Pará e doadores do terreno para o cemitério ou “lugar santo” da comunidade do Norte brasileiro.
Um marroquino que se enquadrou de forma feliz entre os judeus do Oriente Médio, estabelecidos na Mooca, foi Jacques Sarraf. Ele, acompanhado da esposa Vitória Siles, eram procedentes da velha cidade de Safed. Jacques Sarraf instalou-se na sinagoga da União Israelita Paulista, fundada pela família de Mário Amar, da mesma origem. Poliglota, extrovertido, ousado e comunicativo, Sarraf marcou presença alegre na história dos primeiros imigrantes de fala árabe de São Paulo, residentes na Mooca. Iniciou-se como ambulante e, depois, no comércio atacadista de tecidos. Homem de religião, Sarraf foi um conciliador dos participantes das duas sinagogas, em uma mesma rua, construídas por judeus libaneses de Sidon e de Safed, no bairro étnico da região leste de São Paulo. Sarraf mantinha contatos próximos com seus parentes, nascidos em Belém do Pará, participantes da Sinagoga da Rua Abolição. A sinagoga sefaradi de São Paulo recebeu também os imigrantes marroquinos, refugiados da II Grande Guerra. Preocupados com o antissemitismo expresso pela imprensa e pelas tropas nazistas, sediadas no Norte da África, grande número de judeus de antigas comunidades buscou emigrar, pois era corrente que “os nazistas estavam preparando os fornos para os judeus do Marrocos”.
Entre os que se estabeleceram em São Paulo, citamos os Laredo e os Chalom, famílias de projeção do norte africano. Descendente do rabino Aron Laredo – religioso da Região do Rif, no século XVII, Abraham Laredo, além de presidir a comunidade judaica de Tânger, era Presidente da Câmara de Comércio Internacional da expressiva cidade, tendo sido condecorado por serviços prestados com o título de Officiel de Palme Academique. Laredo foi também homenageado por MuhameD V, com a Ordem de Nissam Alauite.
Na cidade do Rio de Janeiro, Isaac Rubens Israel, de origem marroquina, nascido em Portugal, projetou-se nos meios de comunicação. Era filho de Rubens Israel e de Alegria Benoliel, nascida em Manaus. Casou-se com Rosa Barki, da proeminente família sefaradi da Trípoli Italiana. Jornalista e advogado, Rubens adquiriu projeção brasileira pelos oito anos de trabalho na BBC de Londres, sob o nome de Rubens Amaral. Braço direito do jornalista Roberto Marinho, Rubens foi o primeiro diretor da prestigiosa TV Globo.
Mais numerosos, os judeus de origem marroquina que se estabeleceram na Shel Guemilut Hassadim foram, aos poucos, assumindo os quadros diretivos da antiga sinagoga. Entre as novas famílias marroquinas, citamos os Benzaquen, os Levy, os Bensussan e os Pinto. Hoje, a sinagoga é conduzida pelo Rabino Isaac Benzaquen, formado em 1968 pela Yeshivá do Rabino Chefe do Império Britânico, Chacham Dr. Salomon Gaon, de Londres. A entrada desses novos imigrantes permitiu a volta das canções com a característica musicalidade marroquina. O texto contou com o apoio de Samuel Elis Azulay Benoliel, Presidente do Conselho Sefaradi do Rio de Janeiro e das irmãs Barki, Rosa B.Israel e Matilde B. Menasce.
* A autora é historiadora e doutora em História Social (USP).
1 MALVEIRA, Antonio Nunes. Achegas para uma biografia do Professor David José Pérez. Caderno nº. 3 – Colégio D. Pedro II, Rio de Janeiro, 1983. Preocupado com problemas do povo judeu, David José Pérez inscreveu-se no Primeiro Congresso Judaico Mundial onde se postulava a criação de um Estado. Em 1917, dando apoio à Declaração Balfour, Pérez traduziu e prefaciou a obra de Theodor Herzl, no Brasil. 2 Álvaro de Castilho acreditava que o “sionismo deveria fazer parte do movimento humanista”. FALBEL, N. A Imprensa Judaica. Revista Morashá. CBSP, São Paulo: dezembro, 1977.
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