Comida e Religião:
Um banquete Judaico na Amazônia
Por: Renato Athias
A diáspora coexiste com a história do povo de Israel, e parafraseado o Salmo 137, também, junto aos rios da Amazônia encontra-se uma comunidade judaica, sefardita, que desde 1810, se instalou formalmente naquelas terras, de acordo com os principais estudiosos dessa migração para o norte do Brasil. É exatamente essa aceitação do próprio destino diásporico, no qual o exílio torna-se o único elo com a força divina, e, onde a distância da Terra Prometida se transforma numa força motriz dando assim sustentação para manter a identidade de povo escolhido em um país de acolhimento.
Essa comunidade judaica, hoje totalmente identificada com a Amazônia, mantém uma estreita relação com a Terra Prometida, principalmente através dos rituais, que se realizam ao redor da mesa, pois é através da comida e dos banquetes realizados nas margens desses rios, que cruzam a região Amazônica, que essa comunidade se relaciona com o divino. Banquete e ritual estão juntos e fazem parte da reafirmação de um sentimento, pois a comida compartilhada, não os ingredientes, a define como um grupo específico. Essa comunidade com o decorrer dos anos, foi sendo ampliada de maneira contínua com representantes oriundos região norte-africana, principalmente do Marrocos, que não chegavam com a intenção de ali se radicarem, ao contrário, esperavam retornar ao Marrocos.
Porém, com o tempo, e desenvolvendo os seus campos de atividades, de modo a abranger não somente o comércio interno e o de exportação e importação, mas também o setor de navegação e da exploração de seringais, afora a participação nas atividades públicas e no exercício de cargos oficiais, eles foram criando raízes e permanecem até hoje na Amazônia. Eles procuraram se localizar nos pontos estratégicos da bacia do grande rio, desde Sena Madureira no Acre até São Luís do Maranhão, desempenhando um papel relevante no desenvolvimento econômico da região.
A culinária é uma elaboração social e cultural relacionada às pessoas de uma comunidade. Participar de um banquete ritualizado significa fazer uma escolha em relação a um determinado grupo. É nesse sentido, que as comidas étnicas permitem o olhar sobre as relações entre as pessoas de um grupo social específico.
Com relação aos banquetes preparados pelos judeus na Amazônia, diz respeito a uma comida, com características distintivas e uma capacidade simbólica de definição das relações sociais criando vínculos de pertencimento a um grupo determinado. A culinária da comunidade judaica da Amazônia, devido às interdições religiosas sempre teve características populares e os ingredientes utilizados são simples e baratos. As tradições de origem, em geral migrantes proveniente dos países árabes do norte da África, deram as bases das receitas utilizadas pelos judeus da Amazônia, mostrando assim a engenhosidade da adaptação e transformação de produtos simples em pratos deliciosos.
Tradicionalmente a história da alimentação do povo judeu está fundamentada na Torá, o Pentateuco do Livro Sagrado, que descreve a permanência do povo eleito no deserto após a fuga do Egito, e a entrega das tábuas das leis para Moisés. Durante esse período, o povo se alimentava basicamente de pássaros e do Maná que D’us enviara ao deserto, surgindo depois entre os judeus as principais interdições alimentares. Atualmente estão agregadas ao Kashrut: que representa um conjunto de leis sobre a alimentação e culinária, que vai desde o abate de animais, conservação e preparação de alimentos impostos a todos os judeus. Atualmente, essa dieta alimentar é controlada através de selos de qualidade, estabelecidos pelos rabinatos dos países onde as comunidades estão instaladas. Esses alimentos são rotulados como alimentos Kosher (ou Kasher).
Este termo quer dizer: adequado em hebraico, capaz a uso correto. Essa noção aparece na literatura rabínica para designar o que está em conformidade com a lei. Portanto, aquilo que é permitido de ingerir sem desrespeitar as tradições. Mesmo que, na Torá, esses termos (Kasher, Kashrut) não se apresentam com exceção a uma rápida referência ao Livro de Ester, o sentido desses termos e as permissões alimentares foram construídos e continuamente re-elaborados na observação diária, no conhecimento e dos povos durante a diáspora. Todas as prescrições alimentares estão baseadas nas interpretações da Torá e estão baseadas na noção do que é tahor (puro) e tamé (impuro). Ambos os termos são utilizados para caracterizar uma determinada condição espiritual e moral, do povo, do indivíduo, do Templo, porém nunca são utilizadas para descrever limpeza ou sujeira. A comida propriamente, tal como a descrita na Torá, especificamente do Livro de Levítico, apresenta com detalhes esse ideal de pureza e impureza imposto nas práticas culinárias. E nesse sentido, observa-se que essa alimentação é legitimada e procura fortalecer uma identidade étnica. E assim, ao redor da mesa, a aliança estabelecida no deserto, se repete nas casas de famílias judaicas.
Os animais que são permitidos e não permitidos na alimentação judia estão divididos e classificados em quatro categorias apoiados nos textos dos Livros de Levitico e do Deuteronômio da Torá. A primeira categoria se refere aos mamíferos considerados puros e, portanto permitido a preparação de alimentos: são aqueles que têm a pata fendida e que ruminam. Portanto, as carnes de boi, ovelhas, cabras, carneiro são permitidas, enquanto que a carne de porco é completamente proibida, pois este não rumina. Não se pode também comer o quarto traseiro de animais, mesmo daqueles considerados puros. É completamente proibida a utilização de sangue de espécie alguma, precisa-se remover de forma efetiva o sangue da carne. Esta deve ser deixada de molho para abrir os poros e, logo, salgada, a fim de extrair todo o sangue.
O principio vital da vida humana, o Néfésh, se encontra no sangue, e essa substância não pode ser misturada ao sangue dos animais. A segunda categoria representa as aves ou animais que voam. Na Torá estão nomeadas duas dezenas de pássaros que são considerados impuros. Porém, a identificação desses nos dias atuais é um problema, e por isso se considera permitido o uso na preparação de alimentos aqueles conhecidos através da tradição oral, em geral são aves mais comuns e que voam baixo. Existem divergências entre as tradições judaicas com relação aos pássaros considerados puros. A terceira categoria constitui-se de animais aquáticos que devem ter escamas e nadadeiras para ser considerado puro e, portanto pode fazer parte da alimentação humana. Tudo o que é classificado como frutos do mar pertencem a categoria daqueles não apropriados para fazer parte da alimentação judia. A quarta categoria são aqueles dos insetos e outros animais que pulam e que são todos considerados impuros. Não se permite também a absorção de alimentos à base de carne e de leite misturados num mesmo prato durante uma mesma refeição. Tanto para a conservação e como para a preparação existem outras leis, determinadas no Kashrut, que se referem aos utensílios usados na preparação de alimentos. E como estes devem ser usados e guardados no sentido de garantir a pureza plena dos alimentos. Essas são algumas das recomendações básicas, para manter uma dieta estritamente kasher.
É importante dizer ainda, que uma das características distintivas do judaísmo é a contínua incorporação de novas determinações e costumes ao seu código, determinando o que faz parte da pureza; e que permite aos judeus, principalmente os religiosos a se beneficiarem sem se contraporem a Halachá, ou seja, os mandamentos rabínicos posteriores, relacionados aos costumes e tradições, servindo como guia do modo de viver. Chegar até aí foi necessário um amplo conhecimento da sabedoria oral transmitida através das gerações, como também todos os arranjos que se estabeleceram para evitar as transgressões. Tudo que está escrito no Talmude sobre as leis dietéticas judaicas, estas se encontram estabelecidas no tratado de Houline.
De acordo com os depoimentos, de famílias judaicas que vivem na Amazônia, a principal preocupação foi a de adaptar-se àquela realidade, sem perder a própria identidade. Eles estão vivendo numa região onde não existe um chefe religioso próximo e, portanto buscam na tradição oral, apoiando-se mutuamente, adaptar os princípios básicos da culinária judaica dos países de origem, mantendo uma relação com os alimentos amazônicos que pudesse fortalecer suas identidades e renovar aliança divina. Para esses judeus marroquinos, em sua maioria, tornava-se central a relação familiar, pois é o núcleo a partir do qual se constroem a identidade judaica em plena Amazônia. E pode-se perceber através dos depoimentos dessas famílias, que essa identidade amazônica está profundamente enraizada, e é admitida com orgulho e alegria. Diferentemente de outras partes do mundo, os judeus da Amazônia, de uma cidade do baixo-amazonas, por exemplo, se reuniam ao redor da mesa entre várias famílias. E essa celebração semanal os unia, pois no banquete do Shabat se renovava a tradição e a identidade.
Na sexta-feira à tarde, nas cidades do interior da Amazônia, onde havia judeus, depois de fecharem suas lojas, enfim deixar o trabalho iniciava-se os preparativos para a celebração ritual do Shabat o principal banquete. Todos bem vestidos, alinhados, iam reunir-se na casa de uma determinada família. As mulheres já estavam na cozinha, preparando os alimentos e esperando a hora de fazer a oração sobre as duas velas que formalizava o início formal do Shabat. Os filhos, na calçada, procurando no céu a primeira estrela que ia aparecer, para anunciar o início do Shabat. A partir daí, não mais se pegava no fogo para acender. Os homens reunidos em outro local da casa, cobertos com as suas Talets (acessório religioso em forma de um xale feito de seda, lã ou linho, tendo em suas extremidades as tsitsiot (franjas), usado como uma cobertura na hora das preces) estavam realizando as orações sobre vinho o kidush.
A mesa está posta cuidadosamente, com uma toalha branca. No meio as duas velas e na cabeceira, um prato com dois pães traçados e uma taça de vinho. Ao redor da mesa, estão todos inclusive as crianças. Um dos homens, o chefe da casa, segura a taça com vinho e pronuncia a bênção, em seguida a taça passa entre os presentes e cada um toma um gole do vinho, seguido de cantos. Os homens passam também o vinho para os meninos molharem a boca. E quando não se tem vinho, procuram fazer com cachaça, alguns disseram.
Depois, o mesmo homem, chefe da casa, onde de realiza o shabat, segura a halla, o pão caseiro feito em forma de tranças, simbolizando a unidade e pronunciando a bênção, partindo-o em pedaços, e com umas pitadas de sal distribuía entre os presentes. O Shabat é festejado do pôr-do-sol sexta-feira até o pôr-do-sol do sábado. E, portanto fazer o Shabat é realizar três refeições, todas elas com o pão. No jantar da sexta-feira se come geralmente vários pequenos pratos na entrada preparados com os legumes locais, tendo o azeite de oliva como base na preparação. Esses pratos atualmente todos eles adaptados a cultura Amazônica tiveram por base as tradições marroquinas.
Em seguida um prato de peixe que simboliza a abundancia. Vários peixes amazônicos passaram a fazer parte do cardápio tradicional das refeições do Shabat. No almoço do dia seguinte só podem ser consumidos alimentos quentes, embora seja proibido acender o fogo durante o Shabbat. Assim surgem as receitas de pratos de cozimento muito lento (de até 15 horas de duração), tais como a dafina cuja preparação é feita em uma única panela e, sobretudo a receita leva sem dúvida as características de cada família que a prepara. Em linhas gerais a preparação é a seguinte: O prato deve ser preparado na véspera do Shabat. Na noite de quinta-feira, deixa-se 300 g de grão-de-bico de molho em água fria. Substituído na Amazônia por feijão branco ou fava, cuja receita é a seguinte: Coloca-se de molho o grão de bico (ou o feijão branco) escorra-os na sexta de manhã. Corte 1 kg de peito de boi em cubos e 500 g de osso com tutano em rodelas. Numa panela grande, refogam-se no óleo duas cebolas cortadas em fatias finas. Adiciona-se a carne e o osso, e então o grão-de-bico. Lava-se 400 g de arroz em água fria, coloca-se num saco de algodão e em seguida na panela. Descasca-se e amassa-se o alho, e colocando-o na panela junto com duas colheres de café de sal, uma de páprica, uma de cúrcuman, meia de cominho, meia de pimenta e uma colher (sopa) de mel. Cobrir com água fria e deixa-se cozinhar por cerca de vinte minutos. A panela deve estar repleta de molho. Tampar e deixar cozinhar no forno bem baixo (ou numa placa elétrica), na temperatura mínima, até a hora de servir os ovos cozidos com casca de cebola acompanha e pode ser colocados no meio do grão-de-bico, cozinhando com casca durante toda a noite, na panela.
As principais festas judaicas podem ser agrupadas em dois blocos. De um lado as três grandes festas históricas de peregrinação que tiveram lugar e tem como lembrança o templo de Jerusalém, ou seja, a comemoração dos três episódios importantes da história dos judeus: a saída do Egito (Pessah), a promulgação da lei e aceitação dos mandamentos (Shavuot) e a proteção divina durante o período de vida no deserto (Shucot). Como estas datas correspondem a períodos significativos da vida agrícola também estão associadas a um lado festivo de celebração de colheita. Do outro lado estão as festas mais austeras, como Rosh-hashana e Yom Kipur que impões gravidade sem deixar de ser celebradas ao redor da mesa.
O que distingue a culinária dos judeus amazônicos é de fazer parte de um sistema simbólico-ritual que constrói o mundo cotidiano onde os atores sociais fortalecem uma identidade e uma filiação religiosa e de um passado. Na realidade, na sua forma mais simples de se expressar, as leis de pureza e impureza presentes na culinária dos judeus amazônicos constituem um exemplo de como o ato mais rotineiro, como o de comer, torna-se parte essencial de uma expressão religiosa.
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Renato Athias, Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris X (Nanterre), professor no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco e Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Etniciade. rathias@ufpe.br
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