Duzentos Anos de Miscigenação Judaica na Amazônia
Por: Dr. Simão Arão Pecher
Após ser firmado entre o Brasil e a Grã-Bretanha o tratado de Comércio e Navegação e Aliança e Amizade em 1810, iniciou-se a imigração para a Amazônia de muitos judeus de Marrocos, onde viviam agrupados em guetos (Melahs) nas cidades de Fez, Tanger, Tetuan, Casablanca, Rabat e Marrakesh.
Após a extinção da Inquisição em todo território português em 1821 bem como a Proclamação da Independência do Brasil em 1822 pelo Imperador D.Pedro I, foi inaugurada em 1824 a primeira sinagoga da Amazônia na cidade de Belém (capital do Estado do Pará) denominada “Essel Avraham” e, em 1842, o primeiro cemitério israelita, também na cidade de Belém. Com o início do Ciclo da Borracha em 1850 grande número de emigrantes judeus marroquinos foram atraídos para a Região Amazônica.
Em 1866 D. Pedro II decreta a abertura para a navegação mercante do Rio Amazonas e seus afluentes a todas as nações, contribuindo mais ainda para a chegada de mais israelitas sefaradim não só de Marrocos bem como da Península Ibérica, e em 1889, ano da Proclamação da República do Brasil, foi fundada a segunda sinagoga da Amazônia, também em Belém do Pará, denominada “Shaar Hashamaim” . Em 1890 pelo Decreto 119 de 7 de janeiro instituiu-se o princípio de plena liberdade de culto, abolindo a união legal da igreja católica com o governo. A denominação de sefaradim foi instituída desde os tempos bíblicos do grande Rei Salomão, Z’l para se referir aos que constituíram vilarejos na Península Ibérica (Sefarad), hoje Portugal e Espanha.
Com o advento da explosão do Ciclo da Borracha em torno de 1880, muitos nordestinos migraram para a Amazônia devido a seca nos seus estados. Grande número de europeus, principalmente portugueses, ingleses e franceses aqui chegaram como também sírio-libaneses.
Os israelitas vieram em sua maioria do Marrocos Espanhol (Tetuan e Ceuta) e falavam espanhol e haquitia (dialeto que mesclava o hebraico, espanhol e árabe); do Marrocos Francês (Casablanca); do Marrocos Árabe (Fez, Rabat e outras vilas do interior) onde habitavam os “toshabim” (nativos) chamados de “forasteiros” pelos “megorashim”, expulsos de Espanha e Portugal pela Inquisição. Esta onda imigratória teve como base a dificuldade de sobrevivência nos guetos marroquinos devido a superpopulação, doenças contagiosas, perseguição e prisão de judeus. Vieram atravessando o Oceano Atlântico em barcos em busca do Eldorado no Novo Mundo, o sonho de liberdade material, mental e, sobretudo espiritual.
Em Manaus (capital do Estado do Amazonas) foram fundadas duas sinagogas, a “Beit Yaacov” (1928/29) dos “megorashim” (expulsos de Portugal e Espanha) e a “Rabi Meyr” dos “toshabim” (nativos do Marrocos) ou “forasteiros”; e um cemitério, em 1929. Com o declínio do Ciclo da Borracha muitos correligionários saíram de Manaus e Belém, indo a sua maioria para o Rio de Janeiro e São Paulo, sendo que em 19 de janeiro de 1962 foi inaugurada a Sinagoga “Beit Yaacov Rabi Meyr” fusão das duas até então existentes em Manaus. Muitos túmulos com inscrições em hebraico estão misturados com outros túmulos no Cemitério São João Batista de Manaus, diferenciados pela Estrela de David, dentre eles o do Rabi Shalom Imanu El-Muyal, Z’l, o “Santo Milagreiro” para os católicos da cidade, que faleceu em 1910.
Milhares de judeus viveram na calha do rio Amazonas (rios Solimões –da fronteira do Perú a Manaus (AM)- e Amazonas –de Manaus a sua foz em Belém(PA) ) nas cidades de Macapá, Estado do Amapá, Cametá, Óbidos, Faro, Itaituba, Santarém no Pará, e Parintins, Maués, Itacoatiara, Manacapuru, Tefé, Coari no Amazonas e seus afluentes principais (rios Madeira, Mamoré, Guaporé, Purús, etc) e alguns chegaram a Iquitos, Contamana, Yurimaguas e Caballococha, no Peru. As escolas da Aliança Israelita de Marrocos propiciaram uma boa educação aos emigrantes pobres ao se transferir para o norte brasileiro, que aqui chegavam após seus Bar e Bat-Mitzvah (maioridade judaica) com o sonho de sua sobrevivência contra as adversidades na Região Amazônica, denominada de “Hyloea” pelo naturalista Alexandre Von Humboldt, tentando se estabelecer no Brasil, adaptando-se e aculturando-se às condições locais e ao mesmo tempo se empenhando na preservação das tradições hebraicas de seus ancestrais.
Alguns se estabeleciam nas capitais, nas cidades e nos vilarejos ao longo da grande calha do rio Amazonas fundando armazéns e casas comerciais que forneciam roupas, comestíveis, remédios e outros utensílios em troca de castanha, borracha, sementes oleaginosas, frutas e outros artigos extraídos da grande floresta que eram trazidos pelos nativos. Muitos mascateavam pelos rios em embarcações, comprando o extrativismo e vendendo produtos adquiridos em Belém e em Manaus. Esses pioneiros enviavam ajuda financeira para suas famílias no Marrocos. Alguns retornavam para suas famílias após algum tempo, sendo que a maioria ficava morando nos vilarejos às margens dos rios da grande Bacia Amazônica durante muitos anos, acabando por se miscigenar com a população nativa, cabocla e com outros imigrantes aqui chegados.
Os muitos religiosos estabeleceram seus comércios nas capitais e ali constituíram famílias judaicas, freqüentavam as sinagogas e conservaram sua identidade israelita, principalmente nas três grandes festas hebraicas do Rosh Hashanah (Ano Novo), Yom Kippur (Dia do Perdão) e Pessach (Páscoa), além, é claro, de conservar o Shabat (Sábado). Devido ao convívio com as populações locais os e as israelitas foram casando ou se juntando com os não judeus e acabaram por abandonar a religião de seus ancestrais. Poucos e poucas conseguiram converter seus cônjuges não judeus ou não judias, filhos e filhas ao judaísmo.
Não por menos, nomes sagrados aos israelitas como Levy e Cohen, famílias de sacerdotes do Templo de Israel ficaram isolados no grande “hinterland” amazônico, alguns casando com não judias e não judeus e conservaram sua identidade judaica somente no sobrenome, sendo catequizados pelos religiosos católicos. Também algumas pessoas de famílias que se iniciam com o prefixo BEN (do hebraico: filho de) e outras de sobrenomes mais variados tiveram a mesma sorte. Muitos foram convertidos ao protestantismo. Para fugir da perseguição aos judeus imposta pela Igreja Católica ainda do resquício da Inquisição iniciada na Península Ibérica, em torno do descobrimento do Brasil por volta do ano de 1500, com repercussão neste novo continente, muitos israelitas trocaram seus primeiros nomes ou sobrenomes aportuguesando-os com aproximação sonora.
Devido ao “boom” do Ciclo da Borracha no fim do século XIX e início do século XX, até mulheres judias polacas, pobres, foram contrabandeadas da Europa para o serviço de exploração sexual não só nas duas capitais amazônicas como no Rio de Janeiro e São Paulo, gerando alguns descendentes.
Alguns judeus chegaram a ser prefeitos em cidades amazônicas, tais como Itacoatiara Izaac José Pérez, Z’l), Macapá e Afuá (Eliezer Levy, Z’l) e outros foram juízes como Chacon, Z’l (Santo Antônio do Madeira) e juízes suplentes como Moysés José Bensabaht, Z’l e José da Penha,Z’l (Amazonas) e meu tio Isaac Jayme Zagury, Z’l (Macapá capital do Amapá).
Poucos israelitas oriundos da Europa Oriental, chamados de asquenazim aqui chegaram. Meu pai, Nuta Wolf Pecher (conhecido como Nathan), Z’l, asquenazi , neto do rabino Yehuda Beer Pecher, Z’l, e filho de Aron Pecher, Z’l e de Chauci Pecher, Z’l, fugindo da România entre as duas grandes guerras mundiais atravessou os mares, Atlântico e Pacífico, indo morar no Perú, primeiro em Lima e depois em Iquitos, fundando o cemitério judaico. De vapor veio descendo a calha do rio Amazonas, tal qual como o explorador espanhol Francisco de Orellana, passou por Manaus e foi trabalhar em Belém, quando casou em 1940 com minha mãe, Syme Zagury Pecher, Z’l, de família sefaradi neta do rabino de Casablanca Youssef Zagury, Z’l e filha de Leão Zagury, Z’l de Casablanca e de Sara Roffé Zagury, Z’l de Tanger, que vieram de Marrocos fugindo dos pogroms (matança) impostos pelos muçulmanos, se conheceram e casaram em Belém do Pará.
A linda ketubah (certidão de casamento) deles escrita em hebraico, decorada com colunas e ramos de flores, relíquia para minha família, assim descreve esta ascendência. Em 1949 fomos morar em Macapá, então capital do Território Federal do Amapá (atual Estado do Amapá), sendo que a nossa casa de orações era no grande alpendre da casa do casal Naftali, Z’l e Esther Zagury Bemerguy, Z’l, meus tios, somente nos três dias das grandes festas, Pessach, Rosh-Ha-Shanah e Yom Kippur, quando as poucas famílias israelitas lá se reuniam. Era a MINHA SINAGOGUINHA. Meu pai fazia questão de colocar bem no centro da grande mesa retangular, coberta com uma grande toalha branca bordada com Menorahs e Estrelas de David, sua pequena Torah que veio de Israel.
Desde a metade do século passado, muitos descendentes de famílias judaicas ou mistas continuaram a trabalhar em comércios dos seus pais ou antepassados para seus sustentos e de seus filhos, enquanto que outros estudaram em faculdades chegando a exercer as profissões de médicos, advogados, engenheiros, farmacêuticos, economistas e professores que eram proporcionadas pelo Governo Federal através das universidades que foram fundadas nas capitais brasileiras.
Segundo o grande amazônida Prof. Samuel Benchimol, Z’l estima-se em quase trezentos mil o número de descendentes de israelitas que vivem na Amazônia, a grande maioria já afastada do judaísmo, professando outras religiões.
Atualmente existem em torno de quatrocentas famílias hebraicas em Belém do Pará e mais ou menos duzentas famílias em Manaus, capital do Amazonas. Comunidades muito menores em Macapá (Amapá) e Porto Velho (Rondônia) recentemente fundaram suas sinagogas, pois tem que haver pelo menos dez judeus (minian) para as orações.
O grupo étnico judaico na Amazônia é multicolorido na sua tez, desde branco (leucodermo) até mulato (faiodermo), devido a assimilação e a miscigenação com os povos aqui encontrados, tanto nativos e caboclos, dando origem ao JUDEU CABOCLO ou ao CABOCLO JUDEU, como imigrantes europeus e árabes, nestes duzentos anos de convívio saudável, o que espero que continue por muitos e muitos milênios.
Membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores –ABRAMES- e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores -SOBRAMES
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