“Fora Judeus”: História de um conflito étnico em Macapá em 1911
Autor desconhecido
No dia 3 de fevereiro de 1911, a então pequena cidade de Macapá foi sacudida por uma confusão gerada por um menor e um balconista do estabelecimento comercial dos senhores Abrahaam Benassuly e Joaquim Pasaculo. Estes dois senhores faziam parte da comunidade judaica radicada na cidade. Todos tinham a pele muito clara, razão pela qual eram chamados de “brancos ensoados” pelos elementos negros da sede municipal. A animosidade, vez por outra, ocasionava pequenos atritos entre locais e migrantes. A palavra ensoado deriva do latim insolare, isto é, ensoar, cujo significado, é ficar extenuado, abatido, lânguido. Ensoado quer dizer enfraquecido pelo calor. Os israelitas eram de fato fustigados pelo calor e pareciam estar pálidos e doentes.
Contam, os antigos moradores de Macapá, que os moleques costumavam realizar pequenos furtos nas lojas comerciais, o que exigia permanente vigilância por parte dos empregados. Naquele longínquo dia 3 de fevereiro de 1911, um menor atazanava a vida do balconista Isaac. Em dado momento o menino apanhou uma pedra e atirou contra o balcão do comércio, quebrando os vidros das prateleiras. Incontinente, Isaac tira o tamanco (chinela) do pé e atinge em cheio o guri, que sai chorando para a casa do pai Antônio Guardiano. Revoltado, Antônio Guardiano pede a ajuda do irmão José Raimundo e vai tomar satisfações com Isaac, que não lhe dá atenção. Irado, Antônio Guardiano vai a sede da Prefeitura de Segurança (Delegacia de Policia), mas não entra para fazer registro de ocorrência. Em frente ao prédio começa a gritar que iria agir por conta própria, porque em Macapá “preto não tinha vez” e a justiça protegia os brancos. O Prefeito de Segurança era o Capitão Martiniano Gil Vaz, que mandou Antônio Guadiana retirar-se.
Antes de deixar a frente da Prefeitura de Segurança, Guardiano desacatou as autoridades presentes, afirmando que os brasileiros estavam sendo roubados e humilhados pelos amaldiçoados que mataram Jesus Cristo Acompanhado do irmão José Raimundo, congregou um grupo superior a 50 (cinqüenta) indivíduos, entre parentes e amigos e partiram para guerrear os judeus. Todos portavam baraçangas e porretes de madeira nas mãos e, insuflados por Antônio Guardiano foram se posicionar na frente do comércio de Abrahaam Benassuly, situado na antiga Rua Barão do Rio Branco, atual Cândido Mendes. Alertado por amigos, Benassuly dirigiu-se a Prefeitura de Segurança e pediu proteção policial para poder entrar em sua casa. Três praças da Polícia Militar do Pará o acompanharam.
Diversos moradores da cidade simpáticos aos israelitas também se acercaram do local. Enfurecida, a turba continuou gritando palavras de hostis aos comerciantes respeitou. Pressionados para acabarem com o tumulto, os agitadores desrespeitaram os policiais e os agrediram. O mesmo fizeram com Abrahaam Benassuly. “A todo o momento gritavam: “fecha esta baiúca”, mata este judeu filho da puta”. Um reforço policial controlou os ânimos e levou os líderes da algazarra para o xadrez. O Intendente Municipal, Coronel José Serafim Gomes Coelho e o Prefeito de Segurança, Capitão Martiniano Gil Vaz, que estiveram no local pedindo calma, também foram duramente ofendidos e ameaçados. A polícia não teve alternativa que não fosse à prisão dos líderes.
No mesmo dia do entrevero os autos de diligências policiais contra Antônio e José Raimundo Guardiano, deram, entrada na Promotoria Pública da Comarca de Macapá, encaminhados pelo escrivão de polícia Guilherme da Silva Gadelha. O teor da denúncia está relatado acima. Os agitadores foram enquadrados no art. 294, § 1º, menos a terça – parte, 303 e 134, combinado com o art. 63 do Código do Processo Criminal. Estavam arrolados com testemunhas os comerciantes Leão Zagury, Salomão Peres, Fortunato Zagury e os comunitários João Lima Paes, Joaquim Fernandes Coimbra e João Rodrigues da Silva. Os três primeiros de origem judaica e comerciantes.
O Promotor Público José Antônio Siqueira intimou, através de portaria baixada dia 15 de fevereiro, que as testemunhas e o advogado dos réus se apresentassem na Promotoria. O primeiro a depor foi o comerciante e Capitão da Guarda Nacional, Leão Zagury, marroquino estabelecido em Macapá desde 1889. Tudo o que ele disse está transcrito neste trabalho e foi confirmado pelas demais testemunhas.
A 25 de junho de 1911, os autos do processo foram remetidos ao então Promotor Público da Comarca, Manoel dos Santos Almeida. O Tenente-Coronel José Antônio Siqueira, que até pouco tempo era o Promotor Público, agora atuava como 1º Suplente do Juiz Substituto Aurélio Clímaco da Silva. Por ordem do Dr. Antônio Siqueira, contida nos autos de qualificação de 3 de abril, o oficial de justiça Joaquim Simplício Picanço, conduz Antônio Guardiano e José Raimundo à presença do magistrado . Os réus foram ouvidos pelo Dr. Aurélio Clímaco e pelo Promotor e assistidos pelo advogado Raimundo Melchiades Álvares da Costa, tendo o escrivão José Gonçalves Viana registrado os depoimentos.
O Juiz de Direito Aurélio Clímaco da Silva julgou que o processo continha diversas irregularidades como a falta de assinatura de duas testemunhas no auto de qualificação dos réus, ambas analfabetos, bem como a inexistência do exame de corpo de delito, razão que o tornava nulo. O processo também não tinha os nomes completos dos 50 (cinqüenta) acusados e sim seus apelidos. Por falha do Promotor Público e desinteresse dos agredidos, não foi realizado o exame de corpo de delito. O processo foi declarado nulo. Consta que, o Juiz Clímaco da Silva; o 1º Suplente de Juiz, José Antônio Siqueira; o Promotor Público em exercício, Manoel dos Santos Melo; o Prefeito de Segurança, Martiniano Gil Vaz; o advogado, Raimundo Melchiades da Costa; os agressores, os agredidos e as testemunhas, participaram de uma reunião de conciliação que acalmou os ânimos em definitivo.
Antônio Guardiano e José Raimundo eram filhos de uma velha parteira conhecida como “avó Guadiana”, que ficou muito magoada com a atitude dos filhos, devido à amizade que cultivava com as agredidos. O Antônio Guardiano da Silva nunca mais se envolveu em confusão. Por ter boa liderança e ser desprendido, acabou sendo funcionário municipal. Após a instalação do Território Federal do Amapá integrou a relação dos 20 primeiros Jurados do Tribunal do Júri de Macapá, setembro de 1947.
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